A falácia de que todo autista pensa de forma matemática

Título da imagem diz “todo autista é de exatas?”. Subtítulo diz “estereótipos no autismo”. Embaixo, uma moça de cabelos cacheados e óculos com a mão no queixo pensante. Ao redor dela, símbolos matemáticos.

Há umas duas semanas, eu entrei em contato com uma organização/empresa que faz uma “ponte” entre autistas e o mercado de trabalho. Eles oferecem uma formação de 4 meses para o autista aprender habilidades úteis e depois o encaminham para uma vaga em uma empresa parceira ou até a deles mesmo. No e-mail, eu havia feito duas perguntas principais, que eram se alguém da minha área (letras) e da minha cidade (Rio de Janeiro) poderia participar. Daria para me responderem por e-mail, mas preferiram marcar uma chamada de vídeo para me explicar sobre o trabalho deles (o que me deixou bem nervosa, mas aceitei).

Eu fiquei dias com ansiedade acima do normal por conta disso, até que, eventualmente, chegou o dia. Eu praticamente não falei nada, mas ouvi atentamente e até anotei algumas coisas em um caderninho. Algo que me deixou triste foi que, no final, foi tudo para nada, já que não possuem projetos na minha cidade (ou fora de São Paulo) no momento. Acho que a vídeo chamada poderia ter sido evitada se tivessem me respondido por e-mail antes, mas fazer o que…a questão é que, durante a chamada, algumas coisas me entristeceram um pouco.

Primeiro que já introduzem o trabalho que fazem falando que trabalham com autistas com nível 1 de suporte, o que não faz sentido nenhum para mim. Não é mais fácil aprender sobre a pessoa individualmente ao invés de assumir algo só pelo nível de suporte??

Outra coisa foi o gigantesco foco deles na área de TI e exatas no geral. A explicação sobre o surgimento da empresa foi, em resumo, sobre a grande habilidade de memória e lógica que o filho do criador apresentava desde os 7 anos, fazendo com que o pai tivesse essa iniciativa. Essa parte achei muito legal, mas, ainda assim, percebi que aquele estereótipo do autista com pensamento puramente matemático guiava muito as ações dessa empresa.

Uma coisa que ainda não entendo é a associação da lógica à matemática, com o pensamento de que apenas áreas de exata apresentam lógica. No meu caso, eu era péssima em matemática e demais matérias de exatas na escola. Muitas coisas não faziam sentido para mim. Números, incógnitas, equações…isso sempre me pareceu muito abstrato. Talvez não as formas geométricas, mas de que servia isso se, no final, eu deveria traduzi-las em contas? Não existem números na natureza, mas existe quantidade. Inventamos os números para traduzi-la, como um símbolo que nos permitisse falar sobre ela e, assim, poder entender e decodificar fenômenos da natureza.

Os professores nos ensinavam formas de manipular os números, como as contas básicas, equações etc. Meu problema era não conseguir olhar para o quadro cheio de equações e visualizar o que aquilo significava no concreto, no mundo real. As contas no quadro, livro ou caderno sempre foram muito abstratas para mim. Até hoje eu uso os dedos para contas básicas e não confiro o troco. Algumas eu consegui entender, mas são poucas. A esmagadora maioria eu apenas tentei decorar e associar ao que o professor disse que significava, mas só porque eles disseram, não porque eu conseguia perceber. Fico me perguntando se o entendimento do que é lógico é algo fixo ou se varia de acordo com as diferentes mentes que existem.

Em uma época da minha vida, descobri que a escrita era meu ponto forte. Isso não foi surpreendente para mim, pois eu vejo muita lógica nas palavras (ao menos escritas). Eu passei a ver mais lógica ainda quando comecei a estudar linguística, que é a ciência que estuda a linguagem verbal humana. Reparem eu disse “estuda”, e não “dita como ela deve ser usada”. A linguística nada tem a ver com dizer o que está certo ou errado, mas sim em observar como ela funciona naturalmente e criar hipóteses. É científico. Até porque, perdoem-me os leigos teimosos, o “certo” é mera convenção, tal qual a escrita. Já se perguntou por que dizem “o certo é ‘para eu fazer’, e não ‘para mim fazer’”? A verdade é que os gramáticos apenas escolheram qual seria a forma que adotariam, pois, se pararem para ler textos bem antigos, não existia nenhuma convenção de como as palavras deveriam ser escritas e nem que normais gramaticais seguiriam. Sempre vejo pessoas usando o argumento de que o que a pessoa escreveu não seria aceita no ENEM, mas nem o que Camões ou qualquer escritor histórico renomado da nossa língua seria aprovado no ENEM. Uma mesma palavra podia aparecer escrita de forma diferente até no mesmo texto. Se esses textos antigos, sujos, rasgados, com uma grafia sem padrões e uma letra estranha podem ser lidos hoje de forma inteligível, seja nos livros didáticos, na internet ou em textos no geral, agradeçam aos profissionais da filologia. Poucas pessoas param para pensar sobre o enorme privilégio que é podermos ler, em pleno século XXI, a carta de Pero Vaz de Caminha sobre sua primeira impressão ao chegar ao que hoje conhecemos como Brasil, lá para 1500. O conhecimento ( nesse caso, o ocidental) advém de uma contribuição milenar de pessoas que vieram antes de nós, e, se temos acesso a isso, devemos agradecer, inclusive, às ciências que hoje são completamente desvalorizadas na sociedade. Voltando ao “para eu fazer”, não é estranho que a resposta leiga seja “porque ‘mim’ não conjuga verbo”, sendo que o verbo está no INFINITIVO? O que houve com “o certo é ‘entre mim e você’ ou ‘para mim’, pois a preposição exige o pronome oblíquo”? Bem, se em “para eu fazer” a regra da preposição exigir o uso do pronome oblíquo não vale, e muito menos a “explicação” de que “mim não conjuga verbo”, onde está a lógica? Você não vai achá-la nos livrinhos do professor Pasquale. No máximo, decorar (no pior dos casos, com algumas explicações absurdas e completamente inventadas). A resposta para entender é simples: história. Seguindo fatos históricos, a resposta correta seria, sem mais nem menos, “porque escolheram que fosse assim”. Quem escolheu? Os gramáticos, baseando-se na escrita literária portuguesa do século XIX (o que nem de longe pode ser exigido da FALA das pessoas, até porque essa já é uma questão muito mais complexa do que a escrita, com uma mudança extremamente mais fluida e frequente). Não é porque há uma suposta lógica nessas regras, pois elas surgiram não para dizer qual era o certo, mas sim porque precisava haver uma convenção que todos poderiam usar para escrever em língua portuguesa e evitar problemas de entendimento. Podem procurar dia e noite uma lógica perfeita para a nossa escrita, mas vão sempre chegar à conclusão de que a nossa forma de traduzir a língua em letras (ou, como são chamadas na minha área, grafemas) ou “regrinhas de certo e errado” é mera convenção, tanto quanto traduzir fenômenos da natureza em números e equações. Ver ou não lógica em cada um vai depender de como o seu cérebro funciona e, é claro, da competência do sistema educacional. Ainda não entendi a dos números, mas entendi a das letras.

Às vezes, as pessoas tentam justificar o motivo de eu ser uma autista que gosta da área de Letras e que tem dificuldade com as exatas com “é porque você estuda as regrinhas e blá blá blá”. Bem, já expliquei (de forma bem simplista e resumida) que nem essas tais regras possuem essa lógica com a qual tanto querem usar para explicar minha visão de mundo, e também que não é porque é de exatas que é tudo intuitivo e lógico. Eu posso lembrar de várias regras da escrita, mas também preciso ter a sensibilidade de saber que 1) é preciso usá-las com responsabilidade, pois até mesmo um texto acadêmico corre o risco de ser rejeitado/sofrer críticas por ter sido escrito de uma forma completamente pedante e inacessível (inclusive já ouvi histórias sobre a banca examinadora pedir para que o aluno mudasse isso) e 2) não existe o “certo” ou “errado” na linguística, não porque somos “cirandeiros de humanas”, mas porque a ciência não funciona dessa forma em área alguma. Assim como um biólogo que descobre uma variação genética em uma espécie não pode simplesmente decidir que não vai estudá-la porque acha feia, um linguista não pode usar seu juízo de valor (enormemente baseado em preconceito de classe, racial, de escolaridade etc) para decidir que vai ignorar alguma variação, pois achou feia e errada. A natureza não funciona assim, e é isso que a língua também é. A escrita é um recurso muito mais recente e que possui regras como forma de criar um padrão igual para todos (e que sofre alterações conscientes até hoje para facilitar e otimizar seu uso), ou seja, é algo tecnológico.

A área de Letras pode parecer sem lógica para muitas pessoas, assim como eu tenho dificuldade de perceber a de outras áreas. Para mim, ela faz mais sentido, mesmo eu não tendo entendido tudo sem esforço e de primeira. Eu me considero uma pessoa sensível para o pensamento crítico e questionador e nem por isso deixo de ser autista. Eu tenho uma experiência de vida muito mais silenciosa e de observação do que o contrário, e isso contribuiu bastante, ou seja, meu autismo contribuiu para que eu me tornasse o que gostam de classificar hoje como “de humanas” (apesar de eu ter tido dificuldade em várias matérias de humanas na época da escola, me dando bem melhor com a produção de textos e reflexão sobre o uso da língua. Em literatura eu sou uma desgraça porque envolve também sentimentos e outras coisas ainda bem abstratas para mim). É estranha essa divisão tão ferrenha, já que os primeiros matemáticos, físicos e seja lá o que mais do mundo ocidental foram filósofos. Antes de haver equações matemáticas e leis da física, houve o pensamento crítico e sensível, a observação atenta, até que o que podia ser observado ou percebido passou a ser traduzido em linguagem/comunicação humana. Ainda há quem ache que os meus já quase 5 anos de faculdade se resumiram a aprender a por vírgulas em textos e decorar regras gramaticais. Não é assim que o conhecimento funciona. Essas coisas eu poderia aprender na internet ou num curso preparatório, mas eu escolhi a área de Letras pelo meu fascínio em querer compreender a tradução do mundo em língua portuguesa, não porque eu queria melhorar em redação. Já ouvi tanto que eu deveria ir para qualquer área, já que minha faculdade serviria para qualquer uma por ter português e escrita. Não é assim que funciona. Ninguém aprende português na escola. Nós o aprendemos com a vida em sociedade, seja ela uma vida autista ou não. A escola seria, supostamente, o local para pensar a nossa língua crítica e cientificamente (além de aprender a escrita e ter contato com as normas de prestígio), mas, infelizmente, tem sido apenas mais um local desvalorizado que produz, em massa, pessoas arrogantes com o próximo que vão apenas repetir o mantra sem lógica “mim não conjuga verbo”.

Quando criança, o meu silêncio costumava ser bem observador e questionador. Eu me perguntava coisas como “como conseguimos reconhecer as pessoas se não temos o nome escrito na testa?”, “por que o pensamento dessas pessoas na televisão é igual a elas falando, só que sem mexer a boca?”, “será que essa voz que os personagens dublados têm é a que eles teriam caso fossem daqui?”, “por que as outras crianças conseguem ficar encostando uma nas outras, menos eu?”, “será que uma pessoa mais velha que eu já pensou tudo que eu já pensei e muito mais?” entre muitas outras que não me recordo no momento. Infelizmente isso diminuiu bastante depois que eu fui pega pela cruel depressão. Por mais que eu me faça um questionamento de vez em quando, principalmente relacionado ao que estudo, não sinto mais energia para levar adiante e nem prazer em buscar respostas. Isso talvez seja uma das razões pelas quais não tenho conseguido evoluir na minha monografia. Só resta isso para eu me formar. Eu costumo receber cobranças para trabalhar com qualquer coisa, mas pensar em um dia precisar me dedicar horas e horas seguidas diariamente a algo somente pela questão financeira, ignorando o principal motivo de ter escolhido a minha área e aguentado quase 5 anos com tanto, mas tanto esforço no meio da minha pior época depressiva me deixa mais e mais desmotivada a tirar energia não sei de onde para escrever, pesquisar sobre isso e terminar o curso de uma vez por todas.

Eu não lembro mais o que é sentir os pequenos prazeres da vida, não importa quantas coisas boas possam acontecer agora. Na pré-adolescência e início da adolescência, eu costumava tentar me convencer de que minha tristeza vinha do fato de eu não ter o bem material X. Eu pensava coisas como “eu vou ficar feliz quando conseguir comprar isso, ganhar o jogo tal ou o vídeo game tal”. Quando eu conseguia algo assim, eu nunca ficava feliz de novo como eu pensava, então voltava a culpar a falta de outra coisa por isso. “Deve ser porque ainda não consegui aquele outro jogo”. Pensava coisas assim. Depois que eu percebi que nada que eu fizesse ou que bem material meus pais conseguissem me dar em alguma data comemorativa ajudaria, eu passei a mudar a mentalidade e tentar pensar o que faria a Alice antiga feliz, ainda que não fosse fazer a atual. Ao menos com esse pensamento eu consegui não perder toda oportunidade que passava por mim, e consegui insistir em não desistir. Foi assim que eu suportei a escola até o final, me submeti a ir para a faculdade fosse lá quantas dificuldades isso me trouxesse. Tudo em nome de uma suposta Alice que talvez um dia voltasse e fosse ficar feliz com essas coisas. O sentimento que eu mais temo sentir é o de arrependimento, talvez por todas as coisas impulsivas que eu fiz na infância (não que tenha parado completamente…) e que tanto me causaram broncas por não terem uma explicação aparente. Acho que sou muito mais retraída do que seria por causa disso. Um dos meus maiores medos é o de ser inadequada, incomodar as pessoas e não perceber, que pensem coisas erradas sobre mim porque eu não consegui me fazer entender ou por ter tido uma atitude que não se espera normalmente. Eu ainda prefiro me prejudicar do que correr algum risco de prejudicar alguém. Hoje sou uma adulta que se desculpa por tudo, fala muito pouco (eu não entendo isso de pensar antes de agir porque ninguém nunca diz o que seria o certo de pensar. Acabei tendo medo de agir), chora com muita facilidade. Eu não gosto disso, pois tenho medo que se ofendam com meu choro ou que me interpretem errado. Por mais que eu tenha sido e ainda seja uma boa observadora e questionadora, minha parte emocional não é tão madura, e, às vezes, tenho vergonha disso. Eu não quero que me vejam como criança por ter alguns comportamentos interpretados como infantis, mas também não suporto que me façam exigências que excedam o que posso fazer no momento, inclusive emocionalmente. Não adianta. Pode ser muito difícil para os outros entenderem por que choro em uma situação que não precisa disso, ou que fique muito abalada com algo que não parece ser tudo isso para quem está de fora, que tenha dezenas de pesadelos em uma noite só e passe o dia isolada e com medo de ser mal compreendida. É difícil para mim também. Eu também não tenho paciência comigo mesma, não aguento o efeito de coisas supostamente simples em mim, odeio voltar aos momentos em que eu sinto que eu nunca vou deixar de me sentir assim e nunca vai haver alguém que consiga me acolher e não criticar, por a culpa em mim, dizer que exagero. Eu odeio chorar, odeio pesadelos, odeio que o dia passe tão rápido e que não tenha havido um único momento em que eu me senti feliz como antes ou satisfeita comigo mesma, cumprido as milhões de exigências que me faço e odeio parecer exagerada ou até ingrata pelas coisas boas que eu tenho. Às vezes até odeio ter coisas boas, pois não sinto que mereço e muito menos que consigo aproveitá-las direito. Às vezes eu vou à terapia e não me sinto no direito de estar ali, pois deveria dar vez a quem tem problemas de verdade e que vá usufruir melhor. Odeio os “médios e baixos”, essa variação insuportável entre os momentos neutros e os ruins, entre os momentos em que eu consigo tirar energia dessa ideia de uma Alice um dia vai voltar e se sentir feliz com o que fez e os em que eu quero desistir de tudo, principalmente de mim e morrer. Quem quer conviver com uma pessoa assim? Nem eu gosto de conviver comigo, mas eu não tenho escolha. Quando esses problemas estavam no início, eu ouvia que não devia me preocupar com essas coisas porque não eram problemas de verdade, problemas de adultos. Agora eu sou adulta, mas ainda me preocupo com essas coisas. Costumo me considerar uma adulta fajuta, assim como me considerei uma adolescente fajuta. Eu me cobro muito e não consigo fazer nada por mim mesma pensando no que eu sou agora, ao invés de tentar pensar no que uma eu do futuro, que seria a eu do passado, porém crescida, vai sentir, isso se ela ainda for recuperável. Questiono ainda se isso é possível ou utópico, se um dia vou ser substituída por uma outra versão de mim ou se esse processo é como o de um papel amassado que, mesmo reaberto, nunca volta a estar liso como antes. Consigo me sentir parcialmente aliviada quando traduzo em palavras escritas esses sentimentos, mas nunca tenho nenhuma garantia de que ele vai ser útil para mais alguém, especialmente a quem eu mais gostaria de poder me expressar sobre isso. Eu acho até que fugi do assunto principal, mas eu estava desesperadamente precisando desentulhar a mente. Nos últimos dias eu estava pensando em morte, naqueles dias abaixo do neutro, em que não existe em lugar algum essa pessoa que eu queria voltar a ser e que costuma ser minha única esperança e fonte de energia. Peço desculpas por isso a quem estiver aqui apenas pelo assunto principal e tenha se deparado com um texto sem “pé nem cabeça”. Vou tentar concluir com o que deveria ser o assunto do texto todo.

Em resumo, algo que me incomoda e que ainda é um pensamento comum é a noção de que, só por ser autista, a pessoa pensa de forma matemática e poderá somente exercer atividades que envolvam códigos e números. Ainda que não seja o ideal, já temos um aumento maior na quantidade de autistas que encontraram, na escrita, uma forma de expressão, que conseguiram acesso à comunicação alternativa. Já temos livros e páginas de autistas que não falam e dos que falam pouco, que seria mais o meu caso. O que eu mais vi nesses textos incríveis foi uma enorme sensibilidade que só poderia vir de alguém que passou a maior parte da vida em uma posição de observador e vive uma realidade interna que a maioria das pessoas nunca irá entender de verdade. Eu li poemas, visões de mundo, abstrações e ideias que nunca li de ninguém antes, de nenhuma pessoa dita como pertencente à norma. O que mais li foram textos que as pessoas gostam de dizer que são de humanas, e não uma tradução matemática do mundo. Eu digo que sou péssima em literatura e abstração por dificuldade de entender a dos outros. Isso não significa que eu não crie as minhas próprias abstrações, minhas próprias metáforas para traduzir a vida em arte, minha vida, minhas vivências. Há quem vá entender as metáforas cotidianas, as expressões populares, as intenções alheias, mas não vá entender as minhas próprias metáforas, expressões e intenções até que eu as ponha em um papel ou tela digital, ou quem, mesmo assim, não vá entender. Não somos robôs, não nos sentimos satisfeitos com a mera sobrevivência por nossa natureza humana. A natureza autista é uma variação da natureza humana. Queremos também viver e influenciar o mundo como qualquer outra pessoa. Nossos sentimentos são muito mais complexos do que meras imagens em desenho de alguém rindo, chorando, surpreso ou com raiva. Essas eu decorei vendo desenho. O que me interessa é a vida real, onde ninguém é em 2D e faz caras iguais as da cartelas de emoções básicas. É aí que acho difícil, assim como vão achar difícil entender porque eu comecei a rir ou chorar ou a ficar de mal humor de repente. Muitas vezes, nem eu sei o que está me incomodando. Muitas vezes, eu não sei o que estou fazendo com meus braços, rosto ou minha postura e depois vejo uma foto comigo ou olho no espelho e me acho com aparência esquisita. Muitas pessoas no geral também não sabem sempre o que as aflige, por que sentem um tal vazio. Não somos assim tão diferentes. Assim como você é único e complexo, eu também sou e nenhuma lista de site ou definição de um manual diagnóstico ou livro irá me definir bem, muito menos estereótipos. Observação e questionamento faz bem ao mundo e pode nos salvar dos pré conceitos.

Obrigada a quem leu e, mais ainda, a quem não leu,

Alice.

“Preciso aprender isso tudo?” – Autismo e Habilidades Sociais

Descrição de imagem: foto com fundo de um livro bem grosso. Na frente, está escrito na parte de baixo “preciso aprender isso tudo?, autismo e habilidades sociais” em uma barra colorida. Em cima da barra, três personagens em desenho. Da esquerda para a direita, um rapaz amarelo de cabelo preto e curto com a mão na cabeça pensando em remédios para dor, uma moça branca de cabelos castanhos segurando a cabeça com as duas mãos frustrada com uma linha embolada de confusão e uma moça marrom de cabelos castanhos ondulados com as mãos para cima de confusão e três interrogações em cima da cabeça. Na imagem, espalhados cinco símbolos do infinito coloridos, em tamanhos diferentes e girados em ângulos diferentes. Por fim, no topo da imagem, à esquerda e pequeno, a logo da página A Menina Neurodiversa.

Feliz aniversário, site A Menina Neurodiversa!

Antes de começar a redigir sobre o assunto anunciado no título desta matéria, gostaria de dizer que hoje, dia 06 de abril de 2021, fazem exatamente DOIS anos desde que criei esta página, que foi por onde tudo começou. Na época, eu estava passando pelo processo de finalmente aceitar meu diagnóstico como ele é, de tentar deixar para trás aquela ideia de que havia algo bastante errado comigo, mas que talvez tivesse conserto. Como foi bom aprender que, para início de conversa, eu jamais estive quebrada. Para mim, desde que consegui entender minhas diferenças em relação às outras crianças, como não ter habilidades que elas tinham ou zero tolerância para coisas que elas faziam tranquilamente, precisava da mãe para muitas atividades de independência mesmo enquanto crianças até mais novas do que eu já as faziam sozinhas. Isso desde o ensino básico. Eu era muito observadora, mas, mesmo assim, não conseguia imitar os outros, pois nada daquilo era inato em mim. Tive atraso de linguagem, tinha muitas manias, rituais e peculiaridades, mudanças de humor difíceis de compreender (tanto para mim quanto para quem precisava lidar comigo) e muitas outras coisas. Naquele momento dos anos 2000, isso não foi chamado de autismo, mas sim de “o jeito dela”. Não vou entrar em mais detalhes sobre isso, pois não é disso que o texto se encarregar hoje. Gostaria apenas de dedicar este primeiro parágrafo para fazer uma silenciosa comemoração do dia em que finalmente ganhei uma voz, uma forma para me expressar. Desse modo, feliz aniversário, A Menina Neurodiversa! Sua existência definitivamente dividiu a minha vida em um antes e um depois.

“Preciso aprender isso tudo?” – Autismo e Habilidades Sociais

Algo muito bem estabelecido para o diagnóstico de Transtorno de Espectro Autista atualmente são seus dois principais critérios diagnósticos: dificuldades na comunicação social e padrões de comportamentos restritos e repetitivos. Essas são as duas grandes áreas que tornam uma pessoa autista neurologicamente discrepante de pessoas não autistas, e que tornam o autismo uma condição diagnosticável. Com isso em mente, percebemos que essa condição está muito atrelada a um conjunto que diz respeito a questões de saúde, seja com terapias, médicos ou o que for, mas sabemos que não é apenas isso. Para muito além disso, em um outro conjunto, autismo é uma deficiência que faz de nós pessoas autistas, nascidas com uma configuração neurológica diferente, que é o se entende por autismo.

Saber que uma pessoa é autista é de extrema importância para entender suas atitudes e, principalmente, sua natureza. É algo tão importante, que sua descoberta, ainda que tardia, pode mudar a vida de milhões de pessoas pelo mundo para melhor e na medida do possível. Apesar disso, mesmo entendendo melhor sobre nós mesmos ou nossos amigos, parentes etc, um fato não deixa de desaparecer: a percepção de que a sociedade e a natureza autista entram em confronto. As regras sociais de cada cultura é aprendida naturalmente por grande parte das pessoas, assim como as formas de existência e funcionamento que são vistas como padrão. Autistas, assim como pessoas com deficiência no geral, ao se apresentarem como são, geram desconforto aos outros, a sensação de que tem algo a ser consertado nessas pessoas tão destoantes. Essa percepção, se não confrontada e posta em evidência (que é o que pessoas consideradas ativistas tentam fazer, sempre tento como objetivo uma mudança real e concreta no mundo), gera diversos problemas e obstáculos para a plena participação da pessoa com deficiência na sociedade.

Quanto ao autismo, para o qual vamos direcionar nosso foco neste espaço, sabemos da importância de diversas intervenções pensadas para nos ajudar, seja com questões sensoriais que nos deixam em crise, com as dificuldades para nos expressar ou a tremenda rigidez mental que tornam nossas emoções tão difíceis de controlar. Ao mesmo tempo, existe o grande perigo de muitos, senão a maioria, dos profissionais que nos atendem ficarem presos ao primeiro conjunto, do autismo como uma mera questão de saúde, e nunca buscarem o mais importante, que é a do autismo como uma deficiência provocada por uma configuração neurológica em oposição a uma sociedade em que essa configuração não é o padrão, mas que deve ser respeitada a partir do entendimento de que a nossa natureza é e sempre será autista. Por isso, ainda é muito comum o pensamento de que terapia, quando se trata de autistas, deve ter como objetivo principal nos fazer “indistinguíveis de nossos pares”.

Existe uma terapia que promove o treino de habilidades sociais. Ela pode ser benéfica se usada da forma correta, a partir do segundo conjunto. Não deve ser usada como ferramenta para nos ensinar a maneira padrão de funcionamento como o certo, mas sim para que, quando acharmos necessário (inclusive por motivos de segurança) e realmente quisermos usá-la, ela estar disponível, seja decorada mentalmente ou textualmente. Seria uma forma de nos mostrar: “os não autistas fazem isso e esperam dos outros aquilo. Não é estranho? Pois é, mas eles fazem isso” e não “o seu jeito está errado e esse é o motivo de todas as suas dificuldades, portanto vou lhe ensinar como fazer o certo e se encaixar”. Na verdade, ser autista não é o motivo de todas as nossas dificuldades, mas sim a sociedade excludente, que nos vê como menos, como coitadinhos ou incapazes. A proporção da parcela de pessoas que esperam que nós façamos todo o esforço sozinhos, adaptando a nós mesmos, em relação a de pessoas que entendem que a sociedade deve ser diversa, plural, acessível e inclusiva, estendendo a responsabilidade para o coletivo e não a deixando apenas conosco, ainda é extremamente maior. Isso não é justo, não é? Como disse um querido amigo autista, o Lucas, que fiz através do ativismo, os autistas e os não autistas devem se encontrar no meio da ponte, ao invés de nós termos que atravessá-la sozinhos para chegar ao outro lado. Não queremos terapias para nos normalizar; queremos terapias que nos deem recursos para uma melhor independência, autoestima e autonomia, além dos recursos para que consigamos alcançar nossos próprios objetivos, e não os dos outros.

Por fim, isso me leva ao próprio título do texto: “preciso aprender isso tudo?” (em relação às regras sociais neurotípicas). A resposta é “não, eu não preciso. Eu tenho o direito de escolher se quero ou não adquirir alguma habilidade neurotípica, pois, em muitas ocasiões, entendo que o problema é a falta de compreensão e aceitação dos outros sobre mim”. Acho que essa é a melhor maneira de conduzir as intervenções voltadas para nós, a que respeita nossas diferenças e não quer nos mudar, mas sim nos ajudar a nos entender e aceitar melhor como somos, para que possamos perceber nosso próprio potencial e usá-lo da melhor forma possível. Já somos bombardeados com informações todos os dias, que deixam nossos cérebros hiperestimuláveis muito sobrecarregados. Isso já causa dor o suficiente. Imagine também termos que estar na rua (ou fora da zona de conforto num geral), com todos aqueles estímulos, gastando toda nossa energia para lidar como podemos com as pessoas e objetos ao redor, e tendo ainda que evocar toda a enciclopédia de regras do comportamento social neurotípico. Se tivermos aprendido que esse é o jeito correto, o único jeito possível, estaremos sendo impedidos de utilizar nossos próprios recursos naturais para lidar com a situação (como exemplo: fazer stims, sair do local etc), e isso pode ser uma receita para o completo desastre. Um exemplo interessante é, ao invés de considerar não olhar nos olhos como falta de atenção, interesse ou até como forma de nos ver como suspeitos, considerar entender que olhar para o rosto das pessoas nos traz estímulos extras e desnecessários que podem potencializar nossa dificuldade de processar o que estão nos dizendo, ou seja, se quiser que eu te ouça, deverá me permitir tirar o foco do sentido da visão ou nada feito. E isso não é escolha minha, mas sim o meu funcionamento, programado geneticamente mesmo antes de eu nascer. Essa seria uma forma de nos encontrarmos no meio da ponte neste caso.

Autista na família: o que os pais e parentes precisam entender?

Descrição de imagem: Uma moça de trança longa e cabelo cacheado confusa e com as duas mãos abertas para cima ao fundo. Ao lado esquerdo da cabeça dela, três pontos de interrogação. Do lado direito, está escrito “autismo?”. Na parte de baixo na imagem, Está escrito “autista na família?? O que que devo fazer? Como posso ajudar? com um símbolo do infinito colorido de cada lado. No canto superior esquerdo a logo da página A Menina Neurodiversa.

Olá! Hoje pretendo falar sobre coisas importantes que as famílias de autistas PRECISAM saber não apenas pelo bem da pessoa autista, mas também para evitar suas próprias frustrações com tantas expectativas não atendidas oriundas de uma grande falta de conhecimento a respeito do autismo. Como sou expert apenas no MEU autismo e também conhecedora dos critérios diagnósticos, as informações serão fortemente baseadas nas minhas experiências (diagnóstico tardio), com o acréscimo de informações gerais já conhecidas sobre o diagnóstico pelos não leigos. Espero que apreciem, que ajude de alguma forma, especialmente as pessoas que eu tanto amo e que convivem comigo. Utilizarei o formato de tópicos.

#1 POR QUE MINHA (INSERIR NÍVEL DE PARENTESCO) AUTISTA NÃO INTERAGE TANTO COMIGO?

Bem, para quem não faz ideia do que seja autismo, incluindo as características que fazem com que uma pessoa seja diagnosticada com tal condição, aqui vai um dos PRINCIPAIS critérios diagnósticos: DIFICULDADE NA COMUNICAÇÃO SOCIAL. O que é isso? Bem, é algo que vai muito além de não falar nada. A comunicação social representa a utilização da linguagem (verbal ou não verbal) com propósito de/êxito na comunicação. Autistas possuem dificuldade (alguns mais, outros menos) em INICIAR e MANTER uma conversa fluida, com assuntos variados e da forma como o interlocutor espera. Caso você possua um parente autista, isso é essencial de se saber, pois é muito injusto receber julgamento por puro desconhecimento alheio. Para interagir comigo, muito provavelmente você terá que iniciar essa interação, com grandes chances de respostas curtas e sem perguntas em retorno. Como lidar com isso? Pergunte sobre coisas que eu gosto, meus interesses, que logo estarei lhe mostrando minha coleção de quadrinhos, ou vídeo atrás de vídeo sobre meus interesses restritos (outra característica do autismo é ter interesses intensos e restritos a poucos assuntos, causando dificuldade de acompanhar conversas sobre outras coisas por conta de um baixo repertório de assuntos). É assim que consigo interagir na vida real. Se você tivesse essa mesma dificuldade, também passaria a maior parte do seu tempo isolado em seu quarto. Com um pouco de empatia, talvez possa se imaginar nesse cenário.

Se você acha ruim que essa falta de busca por interação e se frustra, procure ler algo sobre autismo para entender que funcionamos assim e relaxe, pois não é nada pessoal. Nesses casos, inicie você a interação. É muito frustrante para mim ter que ouvir reclamações por causa disso mesmo após tendo um laudo médico que diz, basicamente, “ALICE É AUTISTA”. Às vezes, sinto que posso jogar esse laudo no lixo e fingir que nunca existiu, pois nem assim consigo o nível de compreensão e adaptação que gostaria e que me ajudaria a conseguir alcançar mais e mais objetivos. Aliás, eu me saio muito melhor com mensagens de texto. Essa é outra alternativa para conversar comigo e ainda receber mais interação do que receberia na vida real. Por favor, não diga coisas como “essa parente põe uma barreira que impede os outros de interagirem” ou “ela afasta as pessoas/é antipática”, pois isso não é real e, como já disse, julgamentos errados machucam, até porque eu NÃO escolhi ser assim. Eu NASCI assim. Cabe a mim aprender a me aceitar e perceber o meu funcionamento, e a família, a compreender e respeitar. Não é porque me retiro do local com outras pessoas que eu simplesmente não me importo. Isso acontece porque interação social contínua me esgota imensamente, e eu preciso me afastar para recarregar as energias, ficar mais calma, evitar ao máximo uma crise de ansiedade e as dores da sobrecarga sensorial. Até porque as pessoas falam alto e ao mesmo tempo, uma tenta falar mais alto que a outra, eu não entendo nada dos assuntos ou não consigo mais entender o que ninguém fala porque tudo vira um grande ruído maçante, não lido bem com grupos de pessoas.

As outras pessoas costumam ter um repertório maior de assuntos para conversar, principalmente sobre tendências atuais, quem traiu quem, que celebridade se divorciou, a sexualidade alheia, novelas, reality shows e muitas outras coisas. Isso tudo é muito difícil de suportar, pois não só me sinto perdida (e até burra), como não tenho meios de interagir nesse momento. Acabo ficando alheia, extremamente entediada, frustrada, então saio de perto e deixo as pessoas conversarem, pois a minha realidade de assuntos e interesses não converge com a delas, incluindo familiares. O que eu vou fazer no meu quarto sozinha? Basicamente fico me balançando na cadeira (isso é um movimento que acalma), posso pôr meus abafadores de ruído, posso tentar, metaforicamente falando, sair dessa realidade através do meu “mundinho”, que, no momento, se resume a ver vídeos, principalmente de Star Wars, autismo, Suécia e jogos ou tentar encontrar alguma outra pessoa autista na internet para desabafar, trocar experiências, basicamente interagir com alguém que me entende melhor.

Você pode dizer: “se esforce”, “vá lá e aprenda/faça”, mas não funciona assim e parece que não importa quantas vezes eu escreva sobre isso, pois continuo recebendo demandas, expectativas nas minhas costas que, no momento, não tenho como atingir e reclamações sobre algo COMPLETAMENTE fora do meu controle. Inclusive eu poderia ter menos dificuldade com isso hoje em dia se tivesse recebido ajuda especializada na infância. Isso fez (e ainda está fazendo) muita falta, e considero um dos maiores motivos pelos quais meu nível de dependência ainda é médio/alto em comparação a vários colegas da mesma idade ou até mais jovens. Isso me frustra muito e, ao invés de ajudar, me atrapalha, pois minha autoestima diminui mais ainda enquanto a ansiedade sobe. Detesto ser comparada, principalmente com pessoas que não são autistas. Também acho difícil falar ao telefone, então utilize mensagens de texto e leve em conta que tendo a ser muito literal.

#2 POR QUE MINHA (…) AUTISTA NÃO FAZ ISSO E AQUILO JÁ QUE AUTISMO É BASICAMENTE A MESMA COISA QUE TIMIDEZ FORTE?

Bem, esse é um pensamento muito leigo a respeito do autismo. Isso acaba causando comparações e cobranças injustas e sentimento de culpa, afinal, fulano e ciclano já faziam X coisas na minha idade ou até bem antes. Bem, por mais que essas pessoas tenham tido suas dificuldades, eram dificuldades diferentes das minhas. Realidades diferentes, dificuldades diferentes, certo? Oralmente a minha comunicação não é das melhores, então muito provavelmente não vão entender de verdade o que seriam as minhas dificuldades. Eu costumo acabar chorando de frustração por não conseguir explicar direito. Com a escrita, mesmo demorando horas para escrever uma matéria robusta como esta, tenho infinitamente mais facilidade de me fazer entendida, basta apenas que leiam com carinho e a mente aberta ao aprendizado.

Autismo e timidez (assim como introversão), são coisas COMPLETAMENTE diferentes. Timidez é um traço de personalidade da pessoa, que a torna mais reservada, entre outras coisas. “Timidez” que causa PREJUÍZOS reais na vida de uma pessoa NÃO é timidez, já é algo patológico que precisa de ajuda especializada. Timidez é algo normal, e muitas pessoas no mundo são tímidas, assim como a introversão. Uma pessoa introvertida perde energia com interações sociais (mesmo gostando de interagir) e precisa de um tempo só depois. Ao contrário, uma pessoa extrovertida se sente mais energizada e disposta quando está com outras pessoas. Mas e o autismo? Bem, se quer saber sobre autismo, prepare-se para ler a definição do DSM 5 (Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria) a respeito dessa condição, que não é simplesmente timidez ou introversão, mas sim um TRANSTORNO DO NEURODESENVOLVIMENTO.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS PARA O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA:

A. Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado pelo que segue, atualmente ou por história prévia (os exemplos são apenas ilustrativos, e não exaustivos; ver o texto):

  1. Déficits na reciprocidade socioemocional, variando, por exemplo, de abordagem social anormal e dificuldade para estabelecer uma conversa normal a compartilhamento reduzido de interesses, emoções ou afeto, a dificuldade para iniciar ou responder a interações sociais.
  2. Déficits nos comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social, variando, por exemplo, de comunicação verbal e não verbal pouco integrada a anormalidade no contato visual e linguagem corporal ou déficits na compreensão e uso gestos, a ausência total de expressões faciais e comunicação não verbal.
  3. Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos a dificuldade em compartilhar brincadeiras imaginativas ou em fazer amigos, a ausência de interesse por pares.

B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, conforme manifestado por pelo menos dois dos seguintes, atualmente ou por história prévia (os exemplos são apenas ilustrativos, e não exaustivos; ver o texto):

  1. Movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos (p. ex., estereotipias motoras simples, alinhar brinquedos ou girar objetos, ecolalia, frases idiossincráticas).
  2. Insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal (p. ex., sofrimento extremo em relação a pequenas mudanças, dificuldades com transições, padrões rígidos de pensamento, rituais de saudação, necessidade de fazer o mesmo caminho ou ingerir os mesmos alimentos diariamente).
  3. Interesses fixos e altamente restritos que são anormais em intensidade ou foco (p. ex., forte apego a ou preocupação com objetos incomuns, interesses excessivamente circunscritos ou perseverativos).
  4. Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente (p. ex., indiferença aparente a dor/temperatura, reação contrária a sons ou texturas específicas, cheirar ou tocar objetos de forma excessiva, fascinação visual por luzes ou movimento).

C. Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento (mas podem não se tornar plenamente manifestos até que as demandas sociais excedam as capacidades limitadas ou podem ser mascarados por estratégias aprendidas mais tarde na vida).
D. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo no presente.
E. Essas perturbações não são mais bem explicadas por deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) ou por atraso global do desenvolvimento. Deficiência intelectual ou transtorno do espectro autista costumam ser comórbidos; para fazer o diagnóstico da comorbidade de transtorno do espectro autista e deficiência intelectual, a comunicação social deve estar abaixo do esperado para o nível geral do desenvolvimento.

NÍVEIS DE SUPORTE DE PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA, SEGUNDO O DSM 5:

Nível 3: “Exigindo apoio muito substancial” – Déficits graves nas habilidades de comunicação social verbal e não verbal causam prejuízos graves de funcionamento, grande limitação em dar início a interações sociais e resposta mínima a aberturas sociais que partem de outros. Por exemplo, uma pessoa com fala inteligível de poucas palavras que raramente inicia as interações e, quando o faz, tem abordagens incomuns apenas para satisfazer a necessidades e reage somente a abordagens sociais muito diretas. Inflexibilidade de comportamento, extrema dificuldade em lidar com a mudança ou outros comportamentos restritos/repetitivos interferem acentuadamente no funcionamento em todas as esferas. Grande sofrimento/dificuldade para mudar o foco ou as ações. Nível 2: “Exigindo apoio substancial” – Déficits graves nas habilidades de comunicação social verbal e não verbal; prejuízos sociais aparentes mesmo na presença de apoio; limitação em dar início a interações sociais e resposta reduzida ou anormal a aberturas sociais que partem de outros. Por exemplo, uma pessoa que fala frases simples, cuja interação se limita a interesses especiais reduzidos e que apresenta comunicação não verbal acentuadamente estranha. Inflexibilidade do comportamento, dificuldade de lidar com a mudança ou outros comportamentos restritos/repetitivos aparecem com frequência suficiente para serem óbvios ao observador casual e interferem no funcionamento em uma variedade de contextos. Sofrimento e/ou dificuldade de mudar o foco ou as ações.
Nível 1: “Exigindo apoio” – Na ausência de apoio, déficits na comunicação social causam prejuízos notáveis. Dificuldade para iniciar interações sociais e exemplos claros de respostas atípicas ou sem sucesso a aberturas sociais dos outros. Pode parecer apresentar interesse reduzido por interações sociais. Por exemplo, uma pessoa que consegue falar frases completas e envolver-se na comunicação, embora apresente falhas na conversação com os outros e cujas tentativas de fazer amizades são estranhas e comumente malsucedidas. Inflexibilidade de comportamento causa interferência significativa no funcionamento em um ou mais contextos. Dificuldade em trocar de atividade. Problemas para organização e planejamento são obstáculos à independência.

Pois é, autismo é uma condição do neurodesenvolvimento, não um jeito de ser. É uma deficiência que exige apoio para atingir mais independência. Não é só ir lá e fazer algo, pois, se não tiver aprendido essa habilidade, não vai vir do nada (exceto em casos de pessoas com menor necessidade de suporte e capacidade de ser autodidata, o que claramente não é meu caso). Esse tal de apoio que consta na parte anterior do texto é justamente o que se deve receber desde a infância, mas que eu estou começando a receber agora, aos 22 anos. Faço Terapia Ocupacional tanto para conseguir lidar com os estímulos e sentidos (tais como barulhos, cheiros, toques, luzes, cores fortes, perceber meu corpo no espaço, equilíbrio, ter melhor coordenação motora etc), que seria a parte de Integração Sensorial, quanto para desenvolver habilidades do dia a dia, de independência. Faço terapia com fonoaudióloga para melhorar minha comunicação e algumas alterações na fala. Faço psicoterapia para lidar com minha parte emocional. Vou ao psiquiatra para ajudar com o transtorno de ansiedade e a depressão. Tenho apoio psicopedagógico (com uma pessoa muito acolhedora e excelente profissional) para lidar com as disfunções executivas, ansiedade e dificuldades relacionadas ao estudo. Estou fazendo uma avaliação neuropsicológica porque meu diagnóstico do SUS está incompleto (não especificou minhas áreas de dificuldade e nem de habilidade), não foi feito com testes ou escalas (então NÃO sei meu nível de suporte ou “grau de autismo”, como muitos dizem. Pelo que percebo, me encaixo em muitas coisas do nível 1 e em muitas do nível 2), desatualizado (CID 10) e não houve qualquer investigação mais profunda para ver se há outros diagnósticos associados além dos óbvios à vista, nem informações sobre o que fazer depois de receber o papel (terapias, adaptações etc).

O que eu quero dizer é: eu conheço os meus limites mais do que qualquer pessoa e estou fazendo o possível para tentar recuperar todos esses anos perdidos, o atraso acumulado. Essas ajudas que estou recebendo de fora não é para ficar só lá. É para ser praticado em casa também, começando pelo mais fácil até chegar ao mais difícil. Por isso, os pais precisam saber o que está sendo trabalhado nas terapias, acompanhar esse processo, manter contato com os terapeutas e participar, perguntar como dar continuidade em casa. É algo que exige o apoio da família. Quando eu digo que não estou conseguindo me organizar para fazer algo, que não consigo entender quando eu preciso ajudar em casa sem que me digam o que fazer e como fazer (de forma bem explicada, pois um dia desses mãe pediu para tirar a roupa da corda, então desci e tirei a roupa da corda. No final das contas, ela quis dizer que era para tirar tudo da corda, mas eu entendi o que ela pediu literalmente e sem generalizar), que preciso de um apoio visual para não atrapalhar mais do que ajudar, é porque eu realmente preciso e acho que pode ajudar, então preciso do envolvimento da família para que a gente consiga cooperar e não frustrar um ao outro. Quando digo que não consigo limpar algo, como um prato com restos de pudim, não é porque não quero ajudar. Na verdade eu sempre fico feliz em ajudar. O problema é que não deixei de ter dificuldades sensoriais do dia para a noite, e alguns alimentos me causam enorme repulsa, inclusive para olhar, sentir o cheiro e até tocar. Pode me fazer até vomitar ou ficar enjoada. Viver com um cérebro hiperestimulado 24 horas por dia não é nada fácil. É doloroso, literalmente. Quero dizer, fisicamente mesmo. Tenho que processar muitas coisas ao mesmo tempo ao invés de uma por uma e isso se torna maçante, doloroso e mais demorado. Por isso, eu tenho um tempo diferente, posso precisar de uma pausa, ajuda ou até não conseguir fazer algo (até o momento).

São MUITAS coisas que diferenciam uma pessoa autista de uma pessoa apenas tímida. Os autistas possuem algo que profissionais chamam de “atrasos no desenvolvimento”, o que significa desenvolver habilidades em um ritmo mais lento do que crianças típicas. Isso não é sinônimo de ter um problema ou ser inferior às outras, apenas denota que a pessoa com esses “atrasos” (baseados em parâmetros de pessoas típicas), precisa de uma ajuda extra para desenvolver certas habilidades importantes para que no futuro tenham maiores chances de ter mais independência. Fui um bebê risonho e vocal, mas não olhava para minha mãe quando ela me amamentava. Nessa idade tão pequena é difícil perceber sinais. Consigo ver, graças a filmagens antigas, que a partir de um ano de idade fui ficando mais séria, não tinha atenção compartilhada (que é o ato de triangulação que crianças típicas adquirem cedo, olhando para algo que acham interessante, depois para seu cuidador para ver o que ele está achando, e voltar a olhar para aquele algo), ficava mais olhando para o objeto sozinha mesmo.

Com dois anos, os stims (ou estereotipias) já eram bem notáveis, mesmo já se manifestando muito antes (mas, como disse, em bebês é algo muito sutil). Minhas atividades preferidas eram correr de um lado para o outro fazendo som, correr em círculos, derrubar os CDs da minha mãe um por um várias vezes (desculpa, mamãe! <3), entre outras coisas sensorialmente estimulantes. Eu já podia falar, mas, pelo que observei nos vídeos aos quais tive acesso, falava bem pouco em relação a outras criancinhas de 2 anos, tinha pouca expressão facial, vocabulário e habilidade de comunicação não estavam “lá” ainda e muitas coisas que eu dizia era repetindo o que haviam me dito. Isso se chama atraso da fala e de comunicação. Outra coisa interessante é que ainda não havia atenção compartilhada. Em uma cena, minha madrinha me segurava e eu apontava para um balão na mesa da minha festinha de aniversário na hora de tirar foto e ficava repetindo “olha a bola, olha a bola” sem olhar para ela ou mudar o tom de voz nenhuma vez. Eu acho que o que eu queria era dizer “eu quero a bola”, mas comuniquei como podia. Nessa mesma festinha, também houve uma parte em que eu queria ajudar a cortar o bolo, mas me tiraram do banco. Ao invés de dizer o que eu queria, eu simplesmente chorei. Nota-se também minha rejeição a beijos e abraços, que também pude notar nos vídeos de 1 ano de idade. Eu ficava meio rígida no colo, tentando não encostar na pessoa. Em um momento do meu aniversário de 2 anos para tirar foto (coisa que eu detestava), mamãe me segurava no colo e me deu um beijo, chegou pertinho rosto no rosto. A minha reação foi me afastar e tentar proteger meu rosto. Assistindo mais velha, fiquei um pouco triste pensando que minha mãe poderia achar que eu não gostava do carinho dela. A verdade é que era só a minha dificuldade com toques, incluindo beijos. Toques leves e beijos são sensações que demoram a ir embora, mesmo que já tenha passado minutos. Por isso eu preciso “limpar” ou passar a mão na minha pele de forma mais forte na parte que foi encostada de leve, para que a sensação passe logo. Nunca é algo pessoal, pelo menos se tratando da minha família. Eu os amo muito e receber carinho é sempre um momento especial para mim, mas quando eu estou sobrecarregada eu posso não conseguir. É por isso que parece que eu sou carinhosa “só quando eu quero”. Não é isso. Eu sou carinhosa sempre que sinto que consigo suportar os estímulos envolvidos nesse momento, a interação. Quando eu chego por conta própria para fazer isso, é porque sei que, naquele momento, consigo. Eu lembro da sensação de estar no colo de alguém em pé ou sentado; era desconfortável, fazia minha roupa me incomodar mais ainda. O que eu gostava mesmo era de ser carregada com o tal “estilo de noiva”. Com três eu já falava mais um pouco, inclusive sabia dizer, no colo de outra pessoa “eu quero o papai” (isso nunca mudou. Eu sempre quero o “papai”), mas ainda ignorava várias vezes quando era chamada. Foi no vídeo de 4 anos que eu notei que estava muito mais fluida na fala e na interação (apesar de ainda haver dificuldades). Eu pude dizer a uma amiga, por exemplo “olha o que eu sei fazer”. Foi nessa época que voltei a ser mais sorridente.

Dessa forma, não, meu desenvolvimento não foi típico como de uma criança qualquer. Dizer isso é esquecer todos os sinais percebidos. Se tivesse sido, eu não teria aprendido a relatar febre à minha mãe apenas aos 18 anos, ou a amarrar os cadarços com uns 14, abotoar a blusa também tarde, assim como me vestir, tomar banho e ir ao banheiro sozinha. Se tivesse sido, eu possivelmente já estaria indo sozinha comprar minhas próprias roupas, pegando ônibus e metrô para qualquer lugar da cidade sem preocupação de me perder ou de não reconhecer alguém mal intencionado (ou ficar muito nervosa com os estímulos), com uma agenda com dias marcados para sair com amigos, pedindo para ir a shows, festas ou viagens ao invés de um brinquedinho sensorial para minha coleção ou mais um quadrinho de Star Wars, não precisaria de comandos para fazer coisas na casa, saberia isso intuitivamente, não pareceria grosseira quando, para mim, estou falando normalmente e com respeito, poderia vestir tipos variados de roupas, saberia fazer diferentes penteados em mim mesma, iria ao banco sozinha, suportaria estar em um supermercado ou até no mercadinho aqui perto, não teria crises, saberia o que dizer e a hora de dizer, não ficaria ansiosa e perdida o resto do dia porque veio visita aqui e eu não fui avisada antes e estaria sendo a filha que foi desejada, que cumpre todas as expectativas. Eu me sinto culpada de não ser isso! Corro atrás de terapias, dou aula particular para um aluno mesmo sendo difícil para nós dois, ambos autistas, peço para minha psicopedagoga para me ajudar com materiais para me ajudar a fazer as coisas em casa rotineiramente. E eu escrevo porque eu quero que me entendam melhor, que consigamos nos adaptar como família, não fazer cobranças além do que estou conseguindo agora, pois sim, queria ser a filha que só dá orgulho e não deixa a família com medo do que vai ser de mim quando partirem. Eu tenho medo disso também, mas não adianta só temer, tem que começar o preparo, e isso exige a família toda. A minha parte eu já estou fazendo e espero cada vez mais conseguir mostrar que não é coitadismo, não é timidez, não é porque eu não quero ouvir. Eu apenas sinto uma grande falta de mais entendimento sobre autismo (ele não aparece, vai embora, tira férias, depois volta. É a vida toda), sobre mim, sobre o fato de eu amar a minha família não importa as diferenças, de que ninguém sabe tudo ou é dono da verdade, que procurar ajuda para os problemas faz bem a todos do convívio. Eu só quero genuinamente que aprendam sobre autismo, não só uma coisa ou outra, não lembrar em um momento e no outro esquecer, como se o autismo tivesse tirado férias. Sempre tento sentir orgulho de ser como eu sou, mas nem sempre é fácil, principalmente quando não entendem nada sobre isso. Já estou há quase cinco horas escrevendo isso. Espero mesmo que ajude. Eu gosto das minhas manias, das minhas coisas sempre no mesmo lugar, dos movimentos “estranhos” que eu faço e da minha risada que pode parecer “do nada e sem motivo”, segundo quem vê de fora mas eu gostaria de me sentir segura fazendo isso fora do meu quarto, da minha casa), de ser uma pessoa doce, de bom caráter, respeitosa e carinhosa. Eu tenho várias qualidades, mas ainda sou autista e preciso de mais ajuda. As terapias não são para me “consertar”. Não estou quebrada ou com defeito, apesar de ter crescido acreditando nisso, eu apenas preciso dessa ajuda extra por ser autista. Nunca vou deixar de ser, mas sou capaz de aprender muitas coisas.

Eu já escrevi tanto que vai ficar só com 2 tópicos mesmo. Caso esse texto enorme consiga ajudar alguém ou alguma família, já ficarei bem feliz.

Por fim, não sou exemplo de superação para ninguém. Sou apenas uma pessoa que é obrigada a lidar com barreiras da sociedade, o que não deveria acontecer.

Como o filme “Divertida Mente” ajudou uma autista a entender melhor as emoções

Descrição de imagem: foto das personagens do filme divertida mente num fundo azul. Tem a tristeza, que usa óculos redondos e é toda em tons de azul, o medo, que é roxo e está com cara de assustado, o raiva, que é vermelho com a cabeça meio quadrada e parecendo estar com raiva, a nojinho, que é verde e está de braços cruzados e a alegria, que tem cabelo curto azul e corpo amarelo alaranjado. Ela está sorrindo sem mostrar os dentes e com a mão no queixo. Ao lado esquerdo dos personagens, o título Autismo: emoções e empatia, com um símbolo infinito colorido atrás da palavra autismo e embaixo à esquerda escrito a menina neurodiversa.

Olá! Meu nome é Alice, tenho 22 anos e sou autista. Para ser mais específica, sou a autista à qual o título se refere. Estou há uma grande quantidade de meses sem escrever aqui por motivos variados e acumulados. Por alguma razão, hoje me senti motivada a escrever. Estive com a ideia desse texto na cabeça há um tempo já, mas não conseguia nem começar. Agora que estou aqui, na plataforma que me permite me expressar da forma mais satisfatória para mim, vamos ao que interessa: hoje irei compartilhar como mudei de uma pessoa que ficava extremamente nervosa na presença de alguém emocionalmente instável (e saía de perto) e que, depois, evoluiu apenas para alguém que dava tapinhas na cabeça, sem saber o que dizer, para uma pessoa que hoje entente muito melhor sobre como aplicar toda a sua empatia no apoio emocional ao outro.

Como é possível notar na imagem acima (ou na sua descrição), o filme Divertida Mente, da Pixar, teve um papel muito importante nisso. Não estou aqui para contar sobre a categorização das emoções, mas sim como aprendi mais sobre elas de forma a conseguir demonstrar a quem eu gosto ou amo a minha empatia em seus momentos de necessidade de apoio emocional. Sim, eu sinto empatia, apenas não sou boa em perceber as emoções alheias através de suas expressões corporais. Não acredite em quem diz que autistas não têm empatia porque é não apenas uma visão externa e equivocada, mas também preconceituosa. E ainda há profissionais da saúde e educação que divulgam isso. Bem, agora voltando ao assunto: como é que esse filme de animação “para crianças” (só nas aparências, pois é mesmo muito profundo e incrível para qualquer idade) conseguiu me ajudar de uma forma que ninguém nunca conseguiu no que tange às emoções?

Antes de ir direto às respostas, é necessário entender a relação que nós autistas temos com desenhos animados ou coisas consideradas infantis, mesmo na adolescência e vida adulta. Uma coisa muito reproduzida por aí (e que deixa muitos de nós furiosos) é que somos eternas crianças no corpo de adultos ou que nossa idade mental é de uma criança. A verdade é que nós não somos eternas crianças e nossa “idade mental” (um conceito bem capacitista) é a mesma que a nossa idade cronológica. Não importa se assistimos desenhos para crianças pequenas, se gostamos de brinquedos ou bichos de pelúcia e muito menos se pontuamos baixo numa escala de QI prepotente o suficiente para querer medir a inteligência de uma pessoa. Ainda temos a idade que temos. Para alguém que não é autista, muitas vezes é mais interessante ver coisas consideradas mais adultas. No meu caso, eu não me interesso por esse tipo de entretenimento, até porque costuma envolver relações e comunicações sociais muito complexas que eu simplesmente não entendo (tampouco tenho interesse em entender) e/ou não entendo o motivo. É algo muito imprevisível, talvez até caótico. Eu vejo muita beleza nas coisas mais coloridas (não daquelas que sobrecarregam a visão), previsíveis e sutis ou apenas sensorialmente estimulantes. Isso não faz de mim uma criança, mas sim apenas uma adulta autista. E eu não ficaria nem um pouco feliz se tentassem me privar do que me dá prazer e alegria porque não consideram “socialmente apropriado” ou “funcional”. E, além do mais, amo repetição, amo repetir as cenas que mais me interessam, e ninguém deve nunca tirar essa minha felicidade.

Com isso esclarecido, me sinto mais segura para prosseguir com o raciocínio iniciado anteriormente. Pelo que me lembro, foram duas cenas específicas que me impactaram e, figurativamente falando, acenderam uma luz em cima da minha cabeça. Não que isso tenha acontecido imediatamente. Eu li textos sobre o filme por ter dificuldades de entender questões mais abstratas, como as emoções dos personagens. Foi um processo. A primeira cena que me tocou foi a em que a personagem Tristeza, constantemente menosprezada pela Alegria, consegue consolar Bing Bong, o amigo imaginário da Riley (a menina em que as emoções vivem), que estava em um momento de grande fragilidade emocional. Ela não se utilizou da positividade tóxica que a Alegria tentou usar e muito menos fez julgamentos. Ela estava ali para apoiar emocionalmente o amigo e companheiro de jornada. Ela fez perguntas como “como você está se sentindo em relação a isso” e teve uma escuta empática ao ponto de Bing Bong conseguir tirar o peso daquela forte emoção de tristeza e se sentir aliviado por poder desabafar com alguém que está ali realmente para ouvir e demonstrar empatia com sua situação. Isso me ensinou uma coisa importante: uma pessoa nessa situação não precisa de críticas, lição de moral e muito menos que digam que seu problema não é nada demais, que é bobeira. Isso não apenas não funciona, mas piora a situação. O que ela precisa, ao menos de um amigo, é de uma escuta empática e da validação dos seus sentimentos.

Isso também acontece em um episódio do programa de televisão que passava quando eu era criança chamado Todo Mundo Odeia o Chris, em que a esposa chega do trabalho e reclama/desabafa sobre uma colega de trabalho que a irritava. O marido, sem saber muito o que fazer, tenta relativizar a situação, dizendo coisas como “talvez você tenha exagerado” ou julgamentos do tipo. O que ocorre depois é que a esposa fica muito brava. Conforme passa por mais experiências assim, Julius (o esposo) percebe que aquele não era o momento de julgar, mas sim de ouvir, acolher e validar os sentimentos da esposa, mesmo se ela não estivesse certa. No momento da fragilidade emocional (Seja tristeza, raiva, ansiedade ou outra coisa), não é momento para isso. É o momento de contribuir para que a pessoa se acalme, se sinta ouvida e validada, tire o “peso” das costas que a deixou emocionalmente sobrecarregada. É claro que, em um outro momento, em que a pessoa não tenha mais problemas com a situação ocorrida, ter uma conversa a respeito é bem-vindo, incluinve tentar mostrar que talvez a mudança de atitude não precise vir apenas do outro lado.

Hoje, eu me acho uma ótima “ouvinte” (ler textos longos só consigo de quem é muito próximo) e consigo aplicar bem essas técnicas aprendidas, mas apenas por mensagem de texto, o que, para mim, no momento, já basta. Pessoalmente continuo nervosa demais para lidar com essas situações e apenas me faço presente, mas deixo a ação para os mais habilidosos nessa área. Eu tenho muito medo de fazer a coisa errada, às vezes paraliso. Depois que os “experts” fazem sua parte, eu consigo continuar presente e até perguntar se a pessoa está melhor! Por mensagem de voz, o máximo que consigo providenciar, com muito esforço e força de vontade, é enviar um áudio (apenas para pessoas muito especiais) com uma voz monotônica e com um vocabulário que parece muito distante do que eu tenho para escrever (o google e o site de sinômenos também ajudam muito), fora que, com a escrita, tenho tempo para pensar, posso apagar, editar, levar o tempo que precisar etc.

Para finalizar, gostaria de dizer que um “eu sinto muito que esteja passando por isso, mas estou aqui para o que precisar”, um “puxa, e como você se sente em relação a isso?” ou “conte comigo se precisar desabafar/deve ser difícil para você” e mais o alívio de se sentir segura por ter alguém com quem desabafar sem ser julgada vale infinitamente mais do que um “que besteira/exagero”, um “você está chorando por isso? E eu que estou na situação tal?” ou qualquer tipo de crítica/opinião não solicitada naquele momento. Já passei pelas duas coisas e posso seguramente dizer que a diferença é imensa, o tempo de recuperação é bem melhor e mais rápido, e que só o fato de ter havido uma escuta empática (mesmo por alguém que não entenda muito da situação) já é suficiente para evitar o sentimento de culpa que vem junto com as dificuldades emocionais, os pensamentos intrusivos e negativos de si mesmo (que, dependendo do caso, pode levar ao suicídio ou a uma tentativa), o sentimento de não ser compreendido e de estar sozinho, se afogando em uma parte remota do oceano. Não compare os problemas das pessoas, não transforme a conversa em algo sobre você quando estiver tentando consolar alguém. Aquele é o momento da pessoa, assim como também haverá o seu.

Espero que tenham gostado desse texto depois de tanto tempo, mas não posso garantir que irei voltar à ativa como fiz boa parte de 2019 e um pouco de 2020. Estou muito atarefada, com muitas terapias, estudo a fazer, problemas pessoas e outras coisas. Algo que também me afastou um pouco foi ter hiperfoco em outras coisas além de escrever sobre autismo, como Star Wars (já tive antes e agora voltou a “todo vapor”), fora comentários ofensivos de pessoas. De qualquer forma, também tenho as páginas A Menina Neurodiversa no facebook e instagram, apesar de estarem sem conteúdo há um tempo por conta de desânimo e problemas familiares e muitos compromissos. Até a próxima e tchau tchau!

Autismo e eloping: quando o autista foge dos pais

Descrição de imagem: criança correndo. A foto mostra apenas do torso para baixo.

Eloping ou elopement podem ser termos difíceis de traduzir para o português. Seria algo como “fuga”. Esse é um termo muito usado no exterior para se referir a um comportamento comum em autistas, que é o de fugir correndo na rua ou sair andando para longe dos pais. De fato, é algo que assusta muitos cuidadores, pois a rua pode ser um lugar perigoso por diversos fatores, principalmente quando se trata de uma pessoa com certas necessidades de suporte, como crianças e algumas pessoas com deficiência. Muitos pais relatam que seu maior medo nesses casos é o de atropelamento. Não é incomum que autistas tenham uma noção de perigo reduzida e acabem sendo mais vulneráveis tanto a acidentes quanto a pessoas mal intencionadas.

Em seu livro “O que me faz pular” o autista não falante Naoki Higashida relata uma dificuldade de andar na rua de mãos dadas. Ele conta que, quando algo chama sua atenção, não consegue evitar ir correndo em sua direção. Por conta disso, ele acaba soltando a mão da pessoa que o acompanhava e passando a impressão de que não gosta de andar de mãos dadas. Ele deixa bem claro que não é isso o que acontece, mas sim que, como já mencionado, não consegue reprimir a vontade de ir interagir com aquilo que o intrigou. É possível afirmar que essa é uma das formas de manifestação dessa “fuga” do autista. Se o que o chama atenção estiver do outro lado da rua, a travessia pode ser perigosa caso o sinal esteja aberto para os carros.

Para evitar acidentes, muitos pais usam algo chamado safety harness, que também carece de uma tradução precisa. Por causa disso, muitos acabam chamando o dispositivo de “coleira” por aqui, criando um estigma desnecessário àqueles que o usam. O termo “coleira” é usado quase que exclusivamente para se referir a algo que animais de estimação usam quando saem de casa, de forma que não possam fugir de seus donos e sofrer acidentes. A premissa com as crianças é a mesma, mas isso não quer dizer que os pais os estejam tratando como animais. Esse é um estigma que precisa acabar. Recentemente houve um caso de uma mãe que mantinha o filho pequeno preso a essa dita “coleira” enquanto usava o aparelho celular. Alguma pessoa maldosa a fotografou e divulgou a imagem nas redes sociais, que viralizou pouco tempo depois. A mãe foi tão criticada que precisou vir à público se manifestar. O caso ganhou visibilidade e chegou a aparecer na televisão. A mãe relatou que estava chamando um uber e que seu filho é autista.

Não são só crianças autistas que podem se beneficiar do dispositivo. É comum pais o usarem em suas crianças neurotípicas quando são pequenas, pois elas também estão suscetíveis a fugir dos pais e se perder. Se não fosse o estigma, a mãe não teria que ter explicado que seu filho é autista para que as pessoas parassem de criticá-la. Na verdade, ela sequer teria sido exposta da forma como foi.

Fugir correndo não é a única forma de fuga que ocorre em autistas. A forma que mais ocorria comigo, em minhas experiências pessoais na infância, era sair andando sozinha para explorar o ambiente sem perceber que estava deixando meus acompanhantes adultos para trás. Isso já aconteceu diversas vezes e causou muitas preocupações (e broncas). Não apenas quando estávamos fora de casa. Lembro de, uma vez, quando estava em casa com a minha mãe (que estava em sua cama), eu fui até a porta da frente, destranquei a fechadura e simplesmente saí. Felizmente não fui muito longe, apenas até a portaria e voltei. Mas, quando voltei, minha mãe já havia percebido e ficado preocupada. Desde então, ela nunca mais deixou a chave na porta.

Não é incomum que autistas possuam uma maior ingenuidade e pouca noção de perigo. Isso não quer dizer que é algo que não possa ser aprendido. Trabalhe isso com seus filhos desde pequenos. Ensine-os a ligar para os números de emergência e a agir no caso de se perderem. É claro, não se sintam culpados em usar o safety harness caso sinta que é necessário. A segurança dos seus filhos é muito mais valiosa do que qualquer crítica descabida e ignorante que possam fazer.

Espero que tenham gostado do texto! Contem-me das suas experiências com o eloping e como lidam com essa situação. Eu adoraria ouvir. Não esqueçam de curtir a página do Facebook A Menina Neurodiversa. Até a próxima e tchau tchau!

Autismo em tempos de quarentena: a solidão de sempre

Descrição de imagem: imagem em preto e branco. Homem, de costas e do lado de dentro, onde tudo está escuro, olha para fora, onde está claro, por uma janela.

Atualmente, o mundo se encontra em quarentena, uma medida de proteção contra o contágio de uma ameaça viral que pode sobrecarregar o sistema de saúde dada sua grande capacidade contaminatória: o coronavírus. Fomos afetados das mais diversas formas possíveis. Uns não podem trabalhar ou estudar, outros precisam sair diariamente e correr o risco de se contaminar; uns estão trabalhando de casa, outros perderam o emprego. Foi decretado estado de pandemia. Precisamos nos isolar em casa e ficar longe de quem amamos por um bem maior e coletivo. Para uns, isso representa uma completa mudança de rotina. Para outros, o isolamento social é mais um dia como outro qualquer.

Muitos autistas se encontram no segundo grupo, aquele no qual o isolamento sempre foi rotineiro. Não apenas os autistas, mas suas famílias também. É claro que, para quem possuía uma rotina de estudos e terapia semanal, ter que ficar em casa pode ser uma grande mudança. Muitos responsáveis estão se virando para estimular suas crianças como podem em casa, e muitos autistas que trabalhavam ou estudavam estão sentindo a alteração em sua rotina. Apesar disso, não é disso que estou falando. Estou falando do convívio social para além das obrigações diárias, para além das terapias. A solidão é uma parte muito presente da vida de grande parte dos autistas e suas famílias.

Não sou familiar de alguém autista, mas sim autista. Por isso, vou relatar apenas a minha experiência, e deixar relatos de experiências que não vivencio para aqueles que podem falar com propriedade sobre isso.

Conheço autistas que prezam muito pelo tempo que passam sozinhos e não costumam sentir falta de estar com outros. Considero isso algo chamado solitude e gosto de diferenciá-la do que chamo de solidão. O primeiro caso seria algo voluntário, ou seja, a escolha de estar sozinho. Realmente, aprecio os momentos em que quero ficar sozinha fazendo as minhas coisas. Isso ocorre muito quando passo horas fora de casa, como nos dias de aula. Nada como descansar dessa interação social demasiada passando um bom tempo comigo mesma. O problema é quando sinto a solidão, que independe de mim e do que eu quero.

Antes da quarentena, eu passei pouco mais de uma semana indo à faculdade. Também cheguei a ir um dia ao meu novo emprego de estagiária. Tinha acabado de voltar de férias. Quando descobri que precisaria ficar em casa, de quarentena, já sabia que viveria as minhas férias tudo de novo. Tirando uma viagem especial que fiz no final do ano passado para visitar uma pessoa amada, o resto das minhas férias foram exatamente como a quarentena está sendo agora para mim: solitária. A ansiedade de querer ser produtiva sem conseguir, as horas excessivas na cama para não precisar enfrentar o dia, o desejo não realizado de ter uma companhia e de conseguir se ocupar com uma atividade prazerosa…tudo isso continua o mesmo. Às vezes, sinto que eu já vivia em quarentena. Ou quase isso. Se, por um lado, o período da faculdade é tão estressante, por outro, estar de férias dela pode ser tão desagradável quanto estar sobrecarregada com trabalhos, provas, viagens longas de ônibus e matérias chatas.

Minhas maiores distrações têm sido basicamente assistir a vídeos de jogos que nunca vou ter e dormir. Felizmente, tenho um namorado que pode jogar comigo aos sábados à noite e, às vezes, aos domingos. Tenho feito esforços para conhecer novas pessoas pela internet para ter alguém para jogar comigo ou conversar sobre assuntos em comum. Mas para quê? Eu não consigo conversar com estranhos mesmo, eu não sinto mais tanto prazer nas coisas quanto já senti um dia sabe-se lá quando. Só consigo sentir alguma motivação para fazer alguma coisa quando tem alguém para fazer comigo, e isso é muito raro. Os últimos dias foram um tanto quanto abençoados e discrepantes dos anteriores, pois consegui arrumar uma companhia para jogar. Fora isso, raramente estou fazendo alguma coisa divertida.

O que tornava minhas férias suportáveis eram minhas idas semanais à terapia e também minhas consultas periódicas com minha psiquiatra. Fiquei sem a psiquiatra ainda nas férias e sem a psicóloga por causa da quarentena. Agora estou sem as duas. Consegui um atendimento psicológico online temporário e gratuito para o período da quarentena, mas me pergunto se foi uma boa escolha. Tive dois atendimentos até agora e posso dizer que foram muito bons, mas eu queria mesmo mudar de profissional depois de quase dois anos com a mesma, com aquela que já sabe tanto sobre mim? Começar do zero é sempre tão doloroso, e eu sinto tanta, tanta falta do contato com a terapia presencial ou, mesmo que à distância, com a mesma pessoa de antes. Está tudo diferente e, ao mesmo tempo, tudo igual. Isso dói bastante. Não tenho mais quem antes estava disponível para me ajudar. É como se o lado ruim das férias estivesse presente na quarentena, e o lado bom tivesse todo ido embora. As raríssimas saídas de casa para ir ao cinema agora são impossíveis, minha formatura provavelmente não acontecerá mais esse ano, perdi meu emprego, me sinto rejeitada, triste, sozinha e imprestável…e isso não é nada. Já são mais de 100.000 mortes em todo o mundo. Quem será o próximo?

Fique em casa.

O que nunca se deve dizer a um autista (estamos cansados de ouvir isso!)

Descrição de imagem: menininha tapando os ouvidos com as mãos de costas para uma mulher adulta. Ao fundo, a mulher tenta falar com ela.

Recentemente, perguntei aos meus colegas autistas o que eles não aguentam mais ouvir das pessoas por serem autistas. Recebi diversas respostas, mas algumas pareceram se repetir muitas vezes. Decidi trazer aqui exemplos de coisas que você, ao conhecer uma pessoa autista, JAMAIS deve dizer a ela. Vamos começar?

#1 – Você não parece/não tem cara de autista.

Vamos lá. Para começar, gostaria de dizer que, se não fosse pela necessidade de digitar neste momento, minha mão estaria ocupada tapando a minha cara de vergonha alheia/aborrecimento. FELIZMENTE, nunca me disseram isso, mas o que eu já ouvi de história de autista (e até mãe de autista ouvindo isso sobre seu filho) tendo que escutar isso de alguém. E a pior parte é que a pessoa não diz isso por mal, ou seja, não parecer autista é um elogio! Ok. Agora precisei parar de digitar para cobrir minha cara com a mão. No momento em que a pessoa é questionada sobre como é uma cara de autista, nem ela sabe responder. De fato, em muitas condições genéticas, como a Síndrome de Down, a deficiência é bem visível na fisionomia da pessoa. Acontece que isso não é o caso do autismo. A nossa deficiência é invisível. Minha mãe e eu já ouvimos várias gracinhas ao utilizarmos a fila preferencial das lojas. Isso quando não olham feio. Felizmente eu não percebo essas coisas. Só fico sabendo depois quando minha mãe me conta. Uma vez a ouvi contando para alguém que, quando estávamos no ônibus, uma pessoa estava prestes a me tocar para eu me levantar do assento preferencial. Minha mãe imediatamente interrompeu a pessoa e explicou o motivo de eu estar ali. Segundo ela, a resposta recebida foi “não tem cara”. Aaah, se eu tivesse ouvido (como se eu fosse fazer alguma coisa…). As pessoas precisam entender que autismo NÃO tem cara. É simples assim. E não pensem vocês que só autistas com menor necessidade de apoio são submetidos a isso. Uma amiga minha me contou de uma situação em que ela estava com o irmão (autista não falante) na fila preferencial e a confusão foi tanta que ela quase partiu para a agressão física. Isso porque o irmão dela deveria ser um dos que consideram que “tem cara de autista”.

#2 – Você não é autista.

Caramba!! Então quer dizer que minha mãe, minha psicóloga, minha psiquiatra e a supervisora dela, que é professora de psiquiatria da UERJ, estavam enganadas esse tempo todo, e você, certo? Então quer dizer que minhas dificuldades de comunicação social, meus comportamentos repetitivos e minha sensibilidade sensorial são tudo coisa da minha cabeça?? Uau! Você é mesmo um gênio. Descobriu isso tudo só de olhar para mim depois de ter acabado de me conhecer! (Estou ficando boa na ironia. Pelo menos na internet). Sinceramente, o que já ouvi de casos de autistas que acabaram passando por mentirosos, hipocondríacos, Münchausen etc é absurdo. Às vezes, esses comentários podem vir até de pessoas próximas, como amigos e familiares. Os argumentos costumam ser: você parece normal; você não é igual ao meu filho/vizinho/neto/sobrinho/primo (normalmente criança); você está vendo coisa onde não tem; mas você fala ou mas você tem um emprego, filho, é casado; autista não faz essas coisas. Eles são anjos azuis; só crianças podem ser autistas ou só meninos podem ser autistas. A lista é longa, mas vou parar por aqui. Preciso falar sobre cada um desses casos separadamente.

Em primeiro lugar, autista não é anormal!! O que é parecer normal para você? Eu sou autista e sou bem normal, obrigada. Em segundo lugar: cada autista é diferente! NINGUÉM no mundo vai ser igual ao autista que você conhece. E outra coisa: é óbvio que um autista adulto não tem os mesmos comportamentos que uma criança autista. Fora que o autismo é um ESPECTRO, que varia em necessidade de suporte. Uns autistas vão precisar de suporte em todas as atividades do dia, mesmo as consideradas mais simples! Uns não se comunicam falando e precisam de suporte até para ter uma comunicação funcional. Já outros precisam de menos suporte, ou seja, conseguem ter uma maior autonomia e, às vezes, até chegam a ter uma vida completamente independente. Terceiro: por favor, não acuse uma pessoa de estar fingindo uma condição! Nem mesmo os profissionais de saúde mental podem fazer isso, eticamente falando. Eles precisam ouvir as queixas do pacientes e levá-las a sério. Só depois, ao longo do procedimento, é que ele pode começar a desconfiar que seja mentira (isso se houver algum motivo que leve a isso). Uma pessoa que quer viver fingindo ser autista em um mundo tão preconceituoso só pode ser masoquista, sinceramente. Também não é legal dizer que a pessoa está procurando problema em si mesma (autismo não é um problema, só para avisar), pois está desvalidando tudo o que ela sente e tudo o que ela aprendeu sobre si mesma ao longo de toda a vida. Quarto: nem todo autista é não falante! Como eu já disse, o autismo é um espectro de casos e seres humanos muito variados. Muitos autistas também conseguem trabalhar e constituir uma família. Somos capazes de fazer muitas coisas! E não pensem que isso tudo é sem custo: muitos autistas crescem e desenvolvem depressão e ansiedade por conta da sociedade pouco acessível em que vivem. Quinto: autista pode fazer praticamente tudo o que quiser. Essa sua visão de que autistas não fazem isso ou aquilo só atrapalha, pois muitos profissionais com essa visão limitada acabam descartando completamente a possibilidade de autismo apenas porque a pessoa foge ao estereótipo (por exemplo: tem tatuagem, consome álcool, tem amigos, É MULHER…). Essa história de anjo azul é outra coisa que me desagrada muito. Isso não só nos infantiliza como nos desumaniza também. Autista também pode cometer erros, aprender a mentir, fazer coisas que nenhum “anjinho” faria. E essa visão de que somos anjos causa o mesmo dano de que a de que “autistas não fazem isso”. Esse termo contribui para que pessoas duvidem do diagnóstico de autistas adultos ou para que consigam o diagnóstico. Estamos mesmo cansados de sermos vistos como algo tão fantasioso. Nós somos pessoas, isso sim. Temos qualidades e também defeitos. Nós também viramos adultos, nós também podemos fazer coisas de adultos. E por último, mas não menos importante: não, não são só crianças e nem só meninos que podem ser autistas. Autistas crescem como todo mundo. E, no caso dos meninos, o que acontece é que mais meninos são diagnosticados porque os estudos sobre autismo eram baseados em meninos.

#3 – Ah, mas então é bem leve.

A parte mais problemática dessa divisão em graus é justamente essa: autistas taxados de “leves” são vistos como “pouco autistas”, e os mais “severos” são vistos como “muito autistas”. Acontece que não é nada disso. A diferença entre os autistas está na necessidade de suporte que cada um precisa. Não diga que o autismo de alguém é “leve” como forma de desmerecer todas as dificuldades que a pessoa passa diariamente. Leve é a forma como você percebe o autismo de alguém, e não a forma como ele impacta a vida da pessoa autista. Não pense que alguém taxado de “autista severo” é incapaz e nem que alguém taxado de “autista leve” não tem dificuldades. Muitos de nós já percebemos que o nosso nível de autonomia varia bastante, inclusive em um mesmo dia, por diversos fatores, como ter mais dificuldade em uma coisa do que outra, estar em crise, estar em um ambiente novo, estar nervoso etc.

#4 – Todo mundo é um pouco autista/todos estamos um pouco no espectro.

NÃO, pessoa. Não! Pare de nos dizer isso! Não existe ser um pouco autista. Ou você é ou não é. O que acontece é que algumas pessoas podem ter um ou outro traço de autismo sem que sejam autistas! Se você não é autista, não está no espectro e ponto!

#5 – Autismo está na moda.

Nãããão! Não está na moda! As pessoas estão tendo cada vez mais acesso ao diagnóstico e cada dia mais se percebe que autismo não é uma condição rara! A conscientização sobre o assunto está o tornando cada dia mais comentado e representado. Isso não quer dizer que está na moda, mas sim que se fala mais sobre isso.

#6 – Sinto muito! Vou orar pela sua cura.

Quê?? Sente muito pelo quê? Eu tenho orgulho de ser autista, sabia? E ser autista não é uma coisa ruim. Nós não somos tragédias. Somos pessoas diversas, com deficiência, em uma sociedade colorida e diversificada! Fora que orar pela minha cura não vai fazer a menor diferença no meu autismo. Não preciso de cura, pois não estou doente. Preciso que você melhore como pessoa e seja menos preconceituoso. Preciso de apoio de quem cuida de mim, assim como eles também precisam. Preciso de inclusão, aceitação, respeito. Quero o direito de ser quem eu sou sem que isso incomode ninguém. Quero conseguir mais autonomia sem precisar fingir que sou igual a você. Quero e preciso existir ao meu próprio modo.

#7 – É só você se esforçar mais.

Se fosse tão fácil assim, eu não teria passado por nem um terço do que eu passei. Isso com qualquer pessoa. Se melhorar de vida fosse apenas uma questão de esforço, acho que a maioria das pessoas que hoje são pobres estariam milionárias, e muitas que são milionárias estariam falidas. Socialização é algo difícil para mim, por mais que eu me esforce. Não é como se dependesse somente de mim! É necessário que as outras pessoas se adaptem também, pois meu cérebro não funciona como o delas, e o delas não funciona como o meu. Evitar uma crise não é questão de esforço também. Tanto é, que se você reparar, muitos autistas, quando estão se sentindo sobrecarregados, fazem muitos stims. O que seria isso senão uma forma de tentar evitar a crise? Então se ela vier, significa que o autista não se esforçou o suficiente para se autorregular? Claro que não. Nós nos esforçamos todos os dias para fazer coisas que você jamais pensaria que exigem esforço. Por favor, pare de nos dizer isso.

#8 – Autistas não têm empatia.

Mesmo que seja algo frequentemente divulgado por aí, isso não é verdade. Autistas têm empatia sim, e, como em qualquer outra pessoa, ela varia de indivíduo para indivíduo. O que acontece, na realidade, não é uma falta de empatia, mas sim uma dificuldade de atribuir estados emocionais aos outros. Você só pode sentir empatia por alguém que você sabe como está se sentindo, certo? Como ficar feliz pela felicidade de alguém ou triste pela tristeza de alguém se você sequer percebeu que a pessoa está feliz ou triste? Fica bem difícil. É por isso que nos sentimos melhor quando as pessoas são diretas e objetivas conosco. Fica bem mais fácil de entender o que está acontecendo. A partir do momento em que eu sei como você está se sentindo, tenha certeza de que vou me importar.

#9 – Vacinas causam autismo.

Não, vacinas não causam autismo. O “cientista” que fez essa pesquisa já teve sua licença cassada e não pode mais exercer a profissão. Nenhum estudo sério feito até hoje encontrou uma relação entre vacinas e o aparecimento de “sintomas autísticos”. Muitas crianças começam a apresentar os sinais depois de algo chamado “poda neural”, que acontece por volta dos dois anos de idade, e só após isso os pais passam a notar características de autismo. Esse é o chamado autismo regressivo. Esse momento da poda neural coincide com um período importante de imunização das crianças. Com isso, muitos leigos aproveitam para culpar as vacinas por algo que já ia acontecer dentro do cérebro da criança.

#10 – Todo autista é gênio/qual sua super-habilidade?

Não é mentira que alguns autistas são gênios, mas isso apenas acontece em certa de 10% da população autista, que possui uma condição coexistente chamada savantismo (ou Síndrome de Savant). Na grande maioria dos casos, autistas não são gênios e podem apresentar até dificuldades para aprender e deficiência intelectual. Isso se quiser considerar gênio quem tem um QI absurdamente alto. Eu pessoalmente acho que a genialidade pode vir de muitas formas. Outra condição que pode coexistir com o autismo é de as altas habilidades/superdotação. Nesses casos, a pessoa apresenta uma facilidade muito grande para aprender, além de um vocabulário excepcional. Apesar disso, essas pessoas também podem apresentar diversas dificuldades por causa disso, como perder todo o interesse na escola. Agora voltando à maioria dos casos, em que a pessoa não é um gênio, podemos dizer que essa ideia é um estereótipo propagado pela mídia e nos atrapalha bastante. Evitar estereótipos é essencial não somente com o autismo, mas também com qualquer outra forma de existência humana.

Acho que vou parar por aqui por hoje. Tem mais alguma coisa que você acrescentaria à lista? Algo que você já ouviu? Pode ser sobre você ou também um autista que você conhece. Ficarei feliz (ou não) em ler! Até a próxima e tchau tchau!

Autismo e diagnóstico tardio

Descrição de imagem: homem adulto de blusa preta sentado ao lado da janela abraçando as próprias pernas e olhando pela janela.

Muito se fala sobre a importância do diagnóstico precoce de autismo. Isso quer dizer que, quanto mais cedo se diagnostica, melhor é a resposta ao tratamento. Dessa forma, já é possível perceber os sinais de autismo em crianças em idade muito inicial, com 2, 3 anos de idade. Na verdade, há casos de crianças diagnosticadas até mesmo antes dos 2 anos. No caso da Síndrome de Asperger, que é a forma mais branda da condição, o diagnóstico costuma ser feito um pouco mais tarde, mas ainda deve acontecer na infância. O problema é quando tanto os pais quanto os profissionais deixam passar os sinais de autismo. A dificuldade é ainda maior quando se trata de um autismo leve. Levando em consideração esse grave problema, hoje falarei sobre o diagnóstico tardio do autismo.

Quando eu tinha meses de idade, já havia sinais de alerta para se pensar em autismo, como o fato de eu chorar muito quando meus pais saíam comigo, de eu não deixar minha mãe por enfeites no meu cabelo e até mesmo o meu excesso de seriedade e quietude. Apesar disso, nenhum pediatra jamais levantou a hipótese de autismo. Já um pouco maior, eu tinha um problema muito grande com a sensibilidade tátil. Eu não conseguia usar certos tipos de roupa, não conseguia soltar o cabelo e não suportava etiquetas, por exemplo. Sem falar nos toques leves, de que eu tinha aversão. Ainda assim, nenhuma suspeita foi levantada. A situação piorou mesmo lá para os meus 9/10 anos de idade. Minha dificuldade de socialização ficou tão evidente que eu passei a me isolar das outras crianças, a só querer conversar com quem gostava dos meus restritíssimos interesses, a sofrer bullying e a me sentir extremamente diferente dos meus colegas. Com 16 anos, comecei a fazer terapia e a ir a uma psiquiatra. Mesmo assim, ninguém pensou em autismo.

Pouco tempo depois de entrar para a faculdade, tive a minha primeira tentativa de suicídio. Foi só aí que fui encaminhada para outros profissionais de saúde. Passados 6 meses de tratamento, fui diagnosticada autista (e ansiosa) aos 20 anos de idade. Tudo mudou.

Às vezes, me pego pensando nas oportunidades que eu perdi por ter tido um diagnóstico tardio. Será que eu teria tentado suicídio? Será que eu teria sido tão sozinha? Será que eu teria me autoagredido tanto? O que seria diferente? Essas dúvidas me vêm, e eu só consigo sentir frustração e tristeza. Eu queria tanto, tanto ter sido diagnosticada na infância. Eu teria tido todas as intervenções necessárias para o meu desenvolvimento, teria uma inteligência emocional muito melhor, não teria tantos medos e inseguranças e, mais importante: eu teria me entendido e respeitado meus limites.

Por não ter o diagnóstico, eu cresci me sentindo defeituosa, burra e inútil. Eu me sentia sozinha e sem explicação para tudo o que eu sentia. Não apenas eu, mas até mesmo meus pais viam minhas atitudes como birra, preguiça, arrogância. Eles não tiveram culpa. Eu não tive culpa. Mas de quem é a culpa?

Eu não gosto de falar em culpa, mas sei que os profissionais da saúde que me atendiam tinham um papel fundamental em identificar quaisquer dificuldades minhas que não faziam parte de um desenvolvimento considerado típico. A minha mãe já percebia que tinha algo de diferente, mas nenhum profissional nunca atentou para isso. Ela fez o que parecia ser mais adequado: me ajudar da forma que pudia. Com isso, mesmo eu não tendo diagnóstico, a minha mãe era bem cautelosa ao escolher as minhas roupas. Ela também tinha que dar comida na minha boca dada a minha restrição alimentar, principalmente com feijão, e minha dificuldade de manusear os talheres. Ela me ajudava com o dever de casa, ela acompanhava meu progresso escolar, estudava comigo para as provas. Ela me ajudou da forma como pode, e isso sem nem saber que tinha uma filha autista.

É claro que a falta do diagnóstico também atrapalhava a atuação dos meus pais. Eles tentavam forçar a minha socialização, me levando até outras crianças. Isso me apavorava. Eles brigavam comigo quando eu era sincera demais ou grosseira (mesmo que eu não percebesse). Eles achavam estranhos os meus tiques nervosos e movimentos repetitivos. Eles me forçavam a comer comidas que me causavam aversão, achando que estavam ajudando, entre outras coisas. Mas a culpa não é deles. Eles não sabiam. Tudo que eles fizeram foi tentando me ajudar, me dar o melhor. Eu sou muito grata a tudo que fizeram por mim, mesmo tendo algumas críticas. Mas eu sei muito bem que essas críticas, no fundo, não são a eles, mas sim aos profissionais que não os ajudaram. O máximo que aconteceu foi algumas professoras chamarem minha mãe à escola porque eu não falava nem interagia com elas, agia como se fosse muda.

Muitos autistas chegam à adolescência, ou até à fase adulta, sem saber o motivo de suas diferenças e dificuldades. Muitos passam a vida inteira sem o diagnóstico. Isso precisa mudar. Os profissionais estão sempre muito voltados para as crianças. Já li casos de autistas adultos que foram atrás do seu diagnóstico e ouviram “mas por que você quer saber disso agora já crescido?” ou “você realmente é autista, mas não há mais nada que se possa fazer porque já está crescido”. Isso está errado! É sempre tempo de se fazer algo!

Uma das coisas a fazer é começar a terapia. Autistas que crescem sem uma resposta para essas questões da sua vida tendem a ter uma baixa autoestima, prejuízos de socialização, histórico de rejeição e auto-rejeição, prejuízos sensoriais, costumam ser muito autocríticos, deprimidos, ansiosos. Muitos já pensaram ou tentaram o suicídio. Muitos estão fragilizados e sem esperanças ou perspectivas de um futuro feliz. Essas pessoas precisam de ajuda e podem e DEVEM receber ajuda! Em alguns casos, a medicação também pode ajudar. Além disso, outras terapias, como terapia ocupacional, fonoterapia, treino de habilidades sociais etc, podem ser bem úteis.

Por fim, gostaria de dizer que você, autista adulto ou que suspeita ser autista, não está sozinho. Existe uma comunidade inteira de autistas que estão aqui para te acolher. Não desista. Você é importante e não é a negligência dos profissionais de saúde e a falta de inclusão da sociedade que devem te fazer pensar o contrário. Você não tem culpa dos déficits na formação desses profissionais e nem da exclusão social que enfrenta. Precisamos nos unir para vencer isso juntos. Você vai ficar bem e vai conseguir enfrentar todas essas dificuldades. Corra atrás dos seus direitos e sinta-se acolhido por nós, outros autistas. Vai dar tudo certo. ❤

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Autismo e adolescência

Descrição de imagem: um adolescente de camisa branca e braços cruzados sozinho e cabisbaixo. Mais atrás, no fundo desfocado, três jovens adolescentes sentados olham para ele.

A adolescência é um período de grandes mudanças na vida dos jovens. Hormônios, alterações corporais, deixar de ser criança, pressão social para se encaixar em grupos, mais desafios na escola, sexualidade, entre outros, são alguns dos exemplos do que se passa nesse período da nossa vida. Decerto, podemos dizer que a adolescência é o momento no qual percebemos que, na infância, éramos felizes e não sabíamos. Agora, imagine que esse adolescente tem dificuldades com mudanças, de socialização e comunicação, interesses restritos e comportamento repetitivo. É o caso dos autistas. Pensando nesse grupo ainda mais específico de adolescentes, decidi, a partir de uma sugestão de um seguidor da página, abordar o tema “autismo e adolescência”.

Lá para o final da minha infância, com 9/10 anos, a minha socialização ficou ainda pior. Percebi que as outras crianças eram bem diferentes de mim, e eu, delas. Estávamos chegando à chamada pré-adolescência, mas eu continuada a mesma: gostava de correr e ficava toda suada, gostava dos meus brinquedos, via os mesmos desenhos animados. Eu percebi que as outras meninas já formavam grupinhos para andar juntas e falar sobre assuntos que eu jamais entendi: meninos, maquiagem, moda. Não é à toa que eu passei a andar com dois meninos, pois nós só conversávamos sobre jogos e jogávamos juntos. Nesse momento da minha vida, eu superava o bullying através da amizade, ou seja, isso não me fazia tão mal, pois eu tinha amigos (mesmo que poucos). Eu era esquisita, mas ainda conseguia pertencer a um pequeno grupo.

Isso não durou muito: mudei de escola aos 11 anos e já não conseguia mais me encaixar em grupo nenhum. Fiquei sozinha. Não conseguia falar com os colegas, tinha fobia de socialização. Chorava em casa porque não tinha amigos e me sentia deslocada. A partir daí, mudanças estavam acontecendo. Meu corpo estava mudando, as pessoas estavam mudando, as exigências estavam mudando, mas eu continuava sendo a mesma por dentro. Era uma criança ainda.

Na adolescência, tudo ficou pior. Eu era deprimida, ansiosa, desatenta. Havia pressão social para ter amigos, namorar, ir a festas…e eu não fazia nada disso. Eu ficava em casa jogando ou vendo desenho. Só queria saber do mesmo assunto e só sabia conversar sobre isso. Não tinha o corpo ideal, não ligava para roupas da moda, tinha uma péssima postura corporal, me sentia feia. Não suportava ir a festas e quase não tinha amigos. Eu pensava muito em morte. O bullying e a solidão eram muito presentes na minha vida. Eu era uma nerd solitária e estranha.

É claro que o fato de eu não ter o diagnóstico nesse época dificultou tudo, mas até mesmo aqueles que foram diagnosticados na infância, muitas vezes, passam por problemas na adolescência. Acontece que é nesse período que se começa a querer ser independente dos pais, a querer ser legal e descolado. Só que o autista é, na maioria das vezes, dependente. Muitos de nós continuam precisando dos pais até na fase adulta. A necessidade de suporte varia, mas sabemos que é quase sempre necessário. O bullying se amplia, e os autistas costumam ser alvos fáceis. Começam os grupinhos fechados, as chamadas “panelinhas”, mas nós autistas normalmente não nos encaixamos nelas.

É fato que autistas são vistos como estranhos para a maioria das pessoas desinformadas sobre a condição. Imagine um adolescente, tentando ser independente e descolado, vendo seu colega de turma correndo, balançando os braços e fazendo sons incomuns. Imagine ele vendo o colega precisando dos pais, de mais apoio em sala de aula, só conversando sobre naves especiais ou qualquer que seja seu interesse restrito, dizendo coisas indelicadas, tapando os ouvidos e não correspondendo às expectativas dos adolescentes populares. Fica bem difícil querer ser amigo dessa pessoa, que, como podemos concluir, é autista!

Mas, e quando se tem conscientização sobre o autismo? Ou melhor, e quando se aceita o autismo como uma forma válida de existência? Será que precisa ser tão ruim? Nós autistas fazemos tantas terapias, que tentam nos ajudar a nos adaptarmos ao mundo neurotípico. Mas e se a sociedade também tentasse se adaptar a nós? E se um jovem visse uma pessoa autista e, ao invés de sentir vergonha de estar perto dela, ficasse feliz e apreciasse o convívio com o que é diferente? Seria tudo muito melhor.

Os únicos problemas que enfrentaríamos mesmo seriam as mudanças orgânicas. Tudo o que seria de cunho social estaria sob controle, afinal as diferenças seriam aceitas e, melhor do que isso, celebradas. Teríamos amigos, teríamos apoio na escola, teríamos a opção de sair sábado à noite, caso quiséssemos, nos sentiríamos incluídos. Ser adolescente e autista não precisaria ser tão difícil. Nossos assuntos de interesse, por mais diferentes que fossem, seriam respeitados, assim como nossa forma de interagir, comunicar, demonstrar afeto e amizade.

Isso tudo só será possível quando a ignorância a respeito do que é o autismo acabar. Só porque uma pessoa é diferente, não significa que ela não sinta, que ela seja menos. É preciso haver eventos nas escolas, nas igrejas, nas instituições públicas. Precisamos falar sobre autismo. Precisamos ajudar os autistas a sair de seus casulos e ir voar pelo mundo. Precisamos falar sobre neurodiversidade e entender que autismo não é uma doença ou uma tragédia. Precisamos estar dispostos a conviver com quem não é igual a nós e a ter respeito. Precisamos falar sobre bullying, conscientizar os jovens sobre isso. Falem com seus filhos, com seus amigos, com seus alunos. Deem voz ao autista, nos ajudem a conquistar nosso espaço na sociedade. Nos convidem para a festinha, nos chamem para ir ao cinema, nos escutem enquanto falamos do nosso interesse, nos chamem para a sua casa e venham conhecer a nossa. Nos permitam mostrar que somos, na verdade, como você. Sejam nossos amigos.

Espero que tenham gostado dessa matéria. Caso seja de seu interesse, curta a página A Menina Neurodiversa no Facebook para companhar mais de perto o meu trabalho. Até a próxima e tchau tchau!

Desafios de uma autista na universidade

Descrição de imagem: mulher de beca preta e de costas segura diploma para o alto.

Ah, a faculdade…aquele lugar no qual sonhamos em entrar e, depois que entramos, parece que o sonho vira um pesadelo!! A gente só quer que acabe logo. Como podem ver, já é um período difícil na vida de muitas pessoas. Agora, pode ser mais ainda quando se é autista. O ambiente escolar no geral pode ser muito difícil para nós, mas, a faculdade muito mais, pois é um espaço bem maior e com menos atenção individualizada para cada caso específico. Hoje, decidi escrever sobre as minhas dificuldades enquanto universitária autista, afinal, somos uma minoria absoluta nesse espaço acadêmico.

Em primeiro lugar, a mudança da escola para a universidade já pode ser, em si, muito assustadora para qualquer pessoa. Mas, quando essa pessoa tem uma dificuldade particular com mudanças, o medo pode ser ainda mais intenso. O ambiente novo, o percurso novo, as pessoas novas, as matérias novas, professores novos, a rotina nova…tudo isso pode desestabilizar a pessoa autista. Por isso, antes de começar a faculdade, eu pesquisei tudo o que podia sobre meu curso, sobre o prédio em que ocorreriam minhas aulas, vi vídeos que mostrassem os ambientes…me preparei o máximo que pude para não ser pega totalmente de surpresa. O máximo que senti foi ansiedade, mas fiquei calma. No dia da matrícula, fui com meus pais visitar o meu prédio. Isso ajudou muito. No primeiro dia de aula, minha mãe fez o percurso comigo de ônibus para eu aprender o caminho. Isso também foi bem útil. Com isso, posso dizer que uma ótima estratégia para ajudar o autista com essa mudança tão brusca é tentar antecipar o que puder, ir ao local com antecedência, ensinar o caminho, pesquisar junto.

Depois que a faculdade começou, me deparei com meu segundo problema: a interação social. Eu já tinha poucos amigos na escola. Na verdade, eu tinha só uma amiga no ensino médio, mas, mesmo assim, passava os recreios sozinha. Pelo visto, essa amiga era só para fazer trabalhos. Na faculdade, me deparei com uma quantidade absurda de jovens que eu não conhecia e, observando como eram estranhos em relação ao que eu estava acostumada, eu senti, sinceramente, que preferia nem conhecer. Festas com bebida, vestimentas estranhas, falar alto, se atracar romanticamente…esse mundo estranho dos jovens/adultos da faculdade era, certamente, um em que eu não queria entrar. O meu mundo continuava sendo ver desenho e jogar, que que não combinava nada com o dos outros universitários. Me senti muito deslocada. Será que esse ambiente é para mim mesmo? Será que pertenço a este lugar? Como vou sobreviver aqui por, pelo menos, quatro anos? Felizmente, depois de alguns dias, consegui fazer um amigo, e esse amigo depois me trouxe mais uma amiga. Hoje formamos um trio de amizade. Pelo menos consegui arrumar dois amigos, mas não graças à minha própria iniciativa, como sempre. Tive sorte. Em relação aos professores, a interação não é tão boa. Ainda tenho muita dificuldade de tirar dúvidas em sala e ir falar com eles.

Depois de esbarrar com a dificuldade da mudança de rotina e de interação social, foi a vez da hipersensibilidade sensorial. Os jovens lá da faculdade falam muito alto e, como são muitos, ocorrem muitos barulhos ao mesmo tempo. Eu fico desorganizada, incomodada. Às vezes, pode me machucar, me irritar. Não é só o barulho: as luzes também. Algumas vezes, já aconteceu de eu não conseguir olhar para o professor durante a aula por causa das luzes do teto. Deixei de prestar atenção no que ele estava falando. Outro problema não menos importante, na verdade, pior que o das luzes, é o transporte público que pego para ir à faculdade. Eu pego dois ou três ônibus para ir e dois para voltar. Pode ocorrer de pegar um muito cheio de pessoas e eu ficar em pé grudada nelas. Tenho muita sensibilidade tátil. Eu já escrevi aqui no site sobre o direito ao assento preferencial por causa da dificuldade do autista com o transporte público, mas acontece que eu só descobri meu diagnóstico este ano e, além disso, ninguém vai me ceder lugar, já que autismo não é visível no aspecto físico das pessoas. Eu teria que provar que sou autista e, sinceramente, isso deve ser muito cansativo. Não tenho essa coragem ainda. Prefiro me preservar. Já perdi a conta das vezes que cheguei da faculdade chorando e tive crise por causa não só da exaustão da faculdade, mas do transporte público lotado. É algo muito complicado. A solução mais recente que encontramos foi minha mãe me permitir voltar para casa de uber quando a aula termina muito tarde e o transporte costuma ficar muito cheio, mas isso causa muitos gastos e nós não somos ricos para ter esse luxo. Me sinto culpada por fazer minha mãe gastar esse dinheiro por minha causa. Sei que ela gasta com amor e prazer, mas mesmo assim…

Outro problemão que enfrento na faculdade é a dificuldade em dar atenção ao que não me interessa. Não são todas as matérias que tenho que me agradam. Muitas delas são completamente desinteressantes para mim. Isso me faz não conseguir prestar atenção nas aulas e não conseguir me concentrar para fazer trabalhos ou estudar para as provas. Acabo não indo tão bem quanto sei que poderia ter ido. Isso me frustra, pois não gosto de tirar notas abaixo de 9. Sou muito exigente comigo mesma e isso é um problema. Tenho dificuldade em respeitar minhas limitações. Aliás, falando em limitações, outra coisa que me atrapalha muito para fazer trabalhos e estudar é algo que somente há pouco tempo descobri que existia: disfunção executiva. Aparentemente, isso afeta nossa capacidade de organização, planejamento e execução de tarefas, entre outras coisas. É muito comum em diversos transtornos mentais, como autismo e TDAH. Eu sempre peno muito para fazer trabalhos e estudar. Me distraio, não me planejo, fico desorganizada…já aconteceu muitas vezes de eu ficar sem dormir, terminar o trabalho e ir direto para a faculdade entregar, sem ter dormido. Além disso, como já escrevi aqui para o site, matérias muito abstratas, como literatura, são muito difíceis de entender para mim. Como meu pensamento é muito concreto, tendo a entender muito melhor conceitos concretos. Quando chega ao nível da abstração, e o professor começa a, como meus amigos dizem, viajar, eu me sinto perdida. Sinto que não consigo alcançar o raciocínio proposto e acabo não entendendo nada. Nesses casos, preciso recorrer aos meus amigos ou a artigos na internet, de preferência os que se utilizam de uma linguagem bem concreta.

Agora, preciso mencionar um problema que ainda me afeta muito, mas que me afetava muito mais no início da graduação e me causou muita tristeza. Trata-se da apresentação de trabalhos. É fato que eu me comunico muito bem escrevendo, mas, quando se trata de falar, não me saio tão bem assim. Me atrapalho com as palavras, esqueço o que ia dizer, tenho problemas de pronúncia, não consigo falar alto etc. É terrível. No primeiro período, tive que apresentar o meu primeiro seminário. Era meu aniversário, e era o pior presente da minha vida. Eu já estava nervosa de falar na frente da turma e da professora, mas tudo piorou quando o nervosismo de falar em público se aliou à dificuldade com mudanças inesperadas. A apresentação, que ia ser no auditório, passou a ser em outra sala, completamente diferente e bem menor. Fora isso, houve imprevistos durante a nossa apresentação. E aí, quando chegou a minha vez de falar, eu falei por uns 20 segundos e depois não consegui mais. Travei. Sentia que ia infartar tamanha a força com que meu coração batia. Me senti encurralada em um pesadelo terrível. Depois da apresentação, a professora conversou com nosso grupo e me aconselhou a procurar ajuda. Eu já fazia terapia, mas não estava surtindo efeito. Eu não tinha o diagnóstico ainda. Fiquei devastada, me sentindo uma fracassada defeituosa. Fui me isolar em um canto solitário do meu prédio e fiquei chorando. Pedi para os meus pais me buscarem porque não me sentia em condições de voltar de ônibus sozinha. Sorte que tinha essa opção.

Foi no segundo período da faculdade que eu tive a minha primeira tentativa de suicídio. No terceiro, tive a segunda. Foram três no total. Na verdade, foram três com remédios e algumas outras tentativas de auto-estrangulamento. É algo muito difícil de contar, mas necessário. A população autista possui um risco de suicídio expressivamente maior do que a população em geral. Isso é um grande problema. Nas minhas duas primeiras tentativas, eu não sabia o que eu tinha. Ninguém me dava uma resposta para as minhas dificuldades e diferenças. Eu me sentia com defeito, me sentia uma fracassada sem esperança de futuro. Pensava em morte o tempo todo, voltava para casa com planos de me matar. Na verdade, eu já pensava em morte frequentemente desde o ensino médio. Foi uma época muito difícil. Muita solidão e muitos problemas familiares. Problemas graves dentro de casa. Eu não tive qualquer auxílio seja na escola seja na faculdade. Como eu não tinha um laudo, ninguém nem cogitava me ajudar. Parece que só se oferece ajuda a quem tem um rótulo para justificar suas dificuldades. Como se eu me isolar na escola não fosse motivo o suficiente. Como se eu chorar em casa porque não tinha amigos ou porque sofria bullying não fosse motivo o suficiente. Somente uma professora, no oitavo ano do ensino fundamental, chamou minha mãe para conversar por eu não falar com ela em sala. Mas o pensamento era simplesmente “é que ela é muito introvertida” e fim. O colégio em que estudei conta com um núcleo de auxílio para alunos com necessidades especiais. Uma crítica que faço é que só atendem quem tem um diagnóstico. É muito mais fácil assim do que observar o aluno na escola, do que conversar com os pais e oferecer ajuda no ambiente escolar. Na faculdade é ainda pior, é cada um por si e, ainda por cima, uma competição de quem consegue a vaga disso ou daquilo.

Estou prestes a terminar o quinto período da faculdade de Letras e, como não podia ser diferente, já chorei e quase tive crise por não conseguir lidar com tantos trabalhos, por me sentir sobrecarregada. É um ambiente com exigências massantes. Ainda me questiono se é lugar para mim. Felizmente, este semestre, pela primeira vez, uma professora fez uma adaptação para mim. Ela ficou sabendo do meu diagnóstico pelo meu amigo em uma das aulas. Como eu mandei um e-mail para ela avisando da minha situação, ela me ofereceu isenção no trabalho final. Dessa forma, fiquei livre de mais um trabalho. Foi uma tremenda ajuda, e sou muito grata a essa professora. Muito mesmo. Mas, também, essa professora é psicóloga e tem um olhar aguçado para alunos neurodiversos ou diversos das mais diferentes formas. A maioria dos professores não tem esse conhecimento. Muitos têm o pensamento de que o aluno que se vire. Até mesmo quando sabem que é autista. Há alguns dias, ouvi sobre um caso de uma professora que disse que não pode fazer nada por uma aluna autista que vai reprovar na mesma disciplina acho que pela terceira vez. Como podemos sobreviver assim? O que o nosso futuro aguarda? Mais limites? Quando a universidade vai ser, de fato, para todos?

Acho que me alonguei um pouco, mas não me arrependo de nada do que escrevi. Espero que tenha achado esta matéria útil e informativa de alguma forma. Deixe um comentário e curta a minha página no Facebook A Menina Neurodiversa. Até a próxima e tchau tchau!